sábado, 19 de dezembro de 2015

Nasci para Nascer Pablo Neruda. «Como se os levasse dentro da minha ansiedade, encontro os heróis onde os procuro. Ao princípio, não soube distingui-los, mas já encarrilado nas artimanhas da vida, vejo-os passar a meu lado e aprendo a dar-lhes o que não possuem»

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«[…] nasci para nascer, para impedir a passagem daquilo que se aproxima, daquilo que me bate no peito como um novo coração palpitante». In Pablo Neruda

É muito cedo
O toldo
«(…) Reparávamos então uma estacaria derrubada em pleno campo austral. Era Verão. À noite, as equipas recolhiam e, cansados, deixávamo-nos cair sobre o pasto ou nas mantas estendidas. O vento austral carregava de rocios a campina em êxtase e sacudia o nosso toldo movediço como um velame. Com que estranha ternura amei naqueles dias o pedaço de lona que nos protegia, a vivenda que queria mover o nosso sono no regresso do dia esgotante! Depois da meia-noite, eu abria os olhos e, imóvel, escutava... A meu lado, em ritmos iguais, a respiração dos homens adormecidos... Por uma abertura oval do toldo, filtrava-se o amplo alento da noite nos campos... De vez em quando, a angustiosa voz das mulheres possuídas: intermitentes ou distantes, o alucinado coaxar das rás ou o açoitar da corrente do rio contra as obras da pilotagem. Às vezes, arrastando-me como uma pomba silvestre, saía furtivamente do toldo. Do lado de fora, estendia-me no trevo molhado, a cabeça flagelada por nostalgias, com as pupilas atraídas por qualquer constelação. A noite campesina e oceânica enjoava-me, e a minha vida flutuava nela como uma borboleta caída num remanso. Uma estrela cadente enchia-me de uma alegria inverosímil.

A bondade
Endureçamos a bondade, amigos. Ela também é bondosa, a cutilada que faz saltar a roedura e os bichos: também é bondosa a chama nas selvas incendiadas para que os arados bondosos fendam a terra. Endureçamos a nossa bondade, amigos. Já não há pusilânime de olhos aguados e palavras brandas, já não há cretino de intenção subterrânea e gesto condescendente que não leve a bondade, por vós outorgada, como uma porta fechada a toda a penetração do nosso exame. Reparai que necessitamos que se chamem bons aos de coração recto, e aos não flexíveis e submissos. Reparai que a palavra se vai tornando acolhedora das mais vis cumplicidades, e confessai que a bondade das vossas palavras foi sempre, ou quase sempre, mentirosa. Alguma vez temos de deixar de mentir, porque, no fim de contas, só de nós dependemos, e mortificamo-nos constantemente a sós com a nossa falsidade, vivendo assim encerrados em nós próprios entre as paredes da nossa astuta estupidez. Os bons serão os que mais depressa se libertarem desta mentira pavorosa e souberem dizer a sua bondade endurecida contra todo aquele que a merecer. Bondade que se move, não com alguém, mas contra alguém. Bondade que não agride nem lambe, mas que desentranha e luta porque é a própria arma da vida. E, assim, só se chamarão bons os de coração recto, os não flexíveis, os insubmissos, os melhores. Reivindicarão a bondade apodrecida por tanta baixeza, serão o braço da vida e os ricos de espírito. E deles, só deles, será o reino da terra.

Os heróis
Como se os levasse dentro da minha ansiedade, encontro os heróis onde os procuro. Ao princípio, não soube distingui-los, mas já encarrilado nas artimanhas da vida, vejo-os passar a meu lado e aprendo a dar-lhes o que não possuem. Mas eis que me sinto angustiado com este heroísmo e o repilo, cansado. Porque agora quero homens que dobrem as costas à tormenta, homens que uivem sob as primeiras chicotadas, heróis sombrios que não saibam sorrir e encarem a vida como uma grande gruta, húmida, lúgubre, sem frinchas de sol. Mas agora não os encontro. A minha ansiedade está repleta dos velhos heroísmos, dos antigos heróis.

A luta pela recordação
Os meus pensamentos foram-se afastando de mim, mas, chegado a um caminho acolhedor, repilo os tumultuosos pesares e detenho-me, de olhos fechados, enervado num aroma de afastamento que eu próprio fui conservando, na minha pequena luta contra a vida. Só vivi ontem. Ele tem agora essa nudez à espera do que deseja, selo provisório que nos vai envelhecendo sem amor. Ontem é uma árvore de longas ramagens, e estou estendido à sua sombra, recordando. De súbito, contemplo, surpreendido, longas caravanas de caminhantes que, chegados como eu a este caminho, com os olhos adormecidos na recordação, entoam canções e recordam. E algo me diz que mudaram para se deter, que falaram para se calar, que abriram os olhos atónitos ante a festa das estrelas para os fechar e recordar... Estendido neste novo caminho, com os olhos ávidos florescidos de afastamento, procuro em vão interceptar o rio do tempo que tremula sobre as minhas atitudes. Mas a água que consigo recolher fica aprisionada nos tanques ocultos do meu coração em que amanhã terão de se submergir as minhas velhas mãos solitárias...» In Pablo Neruda, Nasci para Nascer, tradução de Eduardo Saló e Mário Dionísio, Publicações Europa América, Estudos e Documentos, nº 159, 1978, edição nº 4159/2648.

Cortesia de PEAmérica/JDACT