«[…] nasci para nascer, para impedir a
passagem daquilo que se aproxima, daquilo que me bate no peito como um novo
coração palpitante». In Pablo Neruda
É muito cedo
O toldo
«(…) Reparávamos então uma estacaria derrubada
em pleno campo austral. Era Verão. À noite, as equipas recolhiam e, cansados, deixávamo-nos
cair sobre o pasto ou nas mantas estendidas. O vento austral carregava de
rocios a campina em êxtase e sacudia o nosso toldo movediço como um velame. Com
que estranha ternura amei naqueles dias o pedaço de lona que nos protegia, a vivenda
que queria mover o nosso sono no regresso do dia esgotante! Depois da
meia-noite, eu abria os olhos e, imóvel, escutava... A meu lado, em ritmos
iguais, a respiração dos homens adormecidos... Por uma abertura oval do toldo,
filtrava-se o amplo alento da noite nos campos... De vez em quando, a
angustiosa voz das mulheres possuídas: intermitentes ou distantes, o alucinado
coaxar das rás ou o açoitar da corrente do rio contra as obras da pilotagem. Às
vezes, arrastando-me como uma pomba silvestre, saía furtivamente do toldo. Do
lado de fora, estendia-me no trevo molhado, a cabeça flagelada por nostalgias,
com as pupilas atraídas por qualquer constelação. A noite campesina e oceânica enjoava-me,
e a minha vida flutuava nela como uma borboleta caída num remanso. Uma estrela
cadente enchia-me de uma alegria inverosímil.
A bondade
Endureçamos a bondade, amigos. Ela também
é bondosa, a cutilada que faz saltar a roedura e os bichos: também é bondosa a chama
nas selvas incendiadas para que os arados bondosos fendam a terra. Endureçamos
a nossa bondade, amigos. Já não há pusilânime de olhos aguados e palavras
brandas, já não há cretino de intenção subterrânea e gesto condescendente que
não leve a bondade, por vós outorgada, como uma porta fechada a toda a
penetração do nosso exame. Reparai que necessitamos que se chamem bons aos de
coração recto, e aos não flexíveis e submissos. Reparai que a palavra se vai
tornando acolhedora das mais vis cumplicidades, e confessai que a bondade das
vossas palavras foi sempre, ou quase sempre, mentirosa. Alguma vez temos de
deixar de mentir, porque, no fim de contas, só de nós dependemos, e
mortificamo-nos constantemente a sós com a nossa falsidade, vivendo assim
encerrados em nós próprios entre as paredes da nossa astuta estupidez. Os bons serão
os que mais depressa se libertarem desta mentira pavorosa e souberem dizer a
sua bondade endurecida contra todo aquele que a merecer. Bondade que se move,
não com alguém, mas contra alguém. Bondade que não agride nem lambe, mas que
desentranha e luta porque é a própria arma da vida. E, assim, só se chamarão
bons os de coração recto, os não flexíveis, os insubmissos, os melhores. Reivindicarão
a bondade apodrecida por tanta baixeza, serão o braço da vida e os ricos de espírito.
E deles, só deles, será o reino da terra.
Os heróis
Como se os levasse dentro da minha
ansiedade, encontro os heróis onde os procuro. Ao princípio, não soube
distingui-los, mas já encarrilado nas artimanhas da vida, vejo-os passar a meu
lado e aprendo a dar-lhes o que não possuem. Mas eis que me sinto angustiado
com este heroísmo e o repilo, cansado. Porque agora quero homens que dobrem as
costas à tormenta, homens que uivem sob as primeiras chicotadas, heróis
sombrios que não saibam sorrir e encarem a vida como uma grande gruta, húmida,
lúgubre, sem frinchas de sol. Mas agora não os encontro. A minha ansiedade está
repleta dos velhos heroísmos, dos antigos heróis.
A luta pela recordação
Os meus pensamentos foram-se afastando de
mim, mas, chegado a um caminho acolhedor, repilo os tumultuosos pesares e detenho-me,
de olhos fechados, enervado num aroma de afastamento que eu próprio fui
conservando, na minha pequena luta contra a vida. Só vivi ontem. Ele tem agora
essa nudez à espera do que deseja, selo provisório que nos vai envelhecendo sem
amor. Ontem é uma árvore de longas ramagens, e estou estendido à sua sombra,
recordando. De súbito, contemplo, surpreendido, longas caravanas de caminhantes
que, chegados como eu a este caminho, com os olhos adormecidos na recordação,
entoam canções e recordam. E algo me diz que mudaram para se deter, que falaram
para se calar, que abriram os olhos atónitos ante a festa das estrelas para os
fechar e recordar... Estendido neste novo caminho, com os olhos ávidos
florescidos de afastamento, procuro em vão interceptar o rio do tempo que tremula
sobre as minhas atitudes. Mas a água que consigo recolher fica aprisionada nos
tanques ocultos do meu coração em que amanhã terão de se submergir as minhas
velhas mãos solitárias...» In Pablo Neruda, Nasci para Nascer, tradução
de Eduardo Saló e Mário Dionísio, Publicações Europa América, Estudos e
Documentos, nº 159, 1978, edição nº 4159/2648.
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