Com
a devida vénia a Valdemar Cruz e ao Semanário Expresso
«Desenhava como ninguém e morreu aos 32 anos
nos braços de Álvaro Siza. O arquiteto assumiu uma viuvez eterna, com as causas
da morte a alimentarem especulações. O Expresso conta pela primeira vez a
história da mulher cuja obra chega agora à Gulbenkian». In texto
de Valdemar Cruz
«(…)
Numa carta escrita após um longo período de silêncio narra uma viagem a Londres
e o insólito de ter Siza a medir 10 milhões de casas palmo a palmo, por
ser essa a sua forma de ver arquitetura. Escreve sobre os filhos, duas
crianças felizes que passaram a minha doença horrorosa sem imagens traumatizantes
e conclui a desculpar-se. É-lhe difícil escrever por tremer imenso da mão.
Por causa disso é que não tenho podido pintar, o que para mim é horroroso. Nos
melhores momentos, o desenho, de quando em vez a pintura, surgem-lhe como uma
salvação. Numa carta para Carlos datada de 25 de outubro de 1967 refere: Além
de a minha costumada verve ter perdido o brilho, acabei agora de fazer um desenho
que me deu cabo da cabeça. Os desenhos, diz-nos agora Siza, mesmo após
longas paragens, surgiam como se tivesse treinado todo o tempo. Era o que mais
o espantava. Laura Soutinho enfatiza o facto de Totó desenhar por puro prazer,
sem qualquer preocupação de carreira. Pegava numa caneta, começava pelos pés
e desenhava num plano só. Não parava. Só interrompia para assinar, mas até
isso raras vezes acontecia. Utilizava uma técnica, diz Álvaro, desenvolvida ao
arrepio de todas as regras ortodoxas. É muito difícil. Há as proporções
gerais do corpo. Se se começa por um pé, por um dedo, facilmente se falha nas proporções.
Há muita gente que esbarra quando chega aos pés ou às mãos. Com uma
exigência total e uma invulgar intuição crítica, não falhava. Começava e, ou
tudo saía a seus olhos perfeito à primeira, ou rasgava. Amarrotava. Deitava
fora. Era de igual modo genial na gravura, como a todos espantava com a riqueza
dos seus bordados. Chega a contratar uma bordadeira para concretizar os
desenhos e acaba também por os expor na Árvore. Eram lindíssimos, diz quem os
viu. Quando convidado por Maria Antónia
a escolher um dos seus trabalhos expostos na cooperativa, o pintor Luís Noronha
da Costa terá surpreendido ao optar, precisamente, por um dos bordados. Taxativo
ao assegurar nunca ter visto ninguém desenhar assim, Alexandre Alves Costa
revela haver ali, naquela de quem diz ter sido a mulher mais interessante que
conheceu, algo fora do normal, o que dava um carácter quase surrealista às
coisas que desenhava. Apresentava um mundo pelo menos estranho.
Inventou um mundo novo. Um mundo libertário, muito sensual, muito físico
e de igual modo perturbante. Ao ponto de, assegura, possuir algumas pinturas
dela que não se atreve a colocar na parede. José Luís Porfírio, crítico de arte
do Expresso, recorda o primeiro contacto com a obra, acontecido por acaso na
mostra de 2002. Ao entrar na sala da cooperativa Árvore vê um corpo meio
desfeito, uns olhos em espiral e percebe logo estar num território
diferente. Tudo aquilo, diz, está no limite da expressão e há
comparações que podem ser feitas com um expressionista como Mário Eloy. Há
alguns desenhos que parece que implodem, tal como alguns desenhos da velhice de
Picasso. Ao olhar para as figuras mais estilizadas ocorre-lhe a comparação
com Leonor Fini (1908-1996), pintora surrealista nascida na Argentina filha de
mãe italiana e com obra espalhada por importantes museus de quase todo o mundo.
Há nos desenhos de Maria Antónia um
lado de exceção que muito lhe interessa, e não tanto a pessoa que só desenha
muito bem. Percebe-se que há ali um drama, prossegue. Para o crítico, a
artista, estava presa dentro da própria
cabeça e representa uma singularidade. Porfírio revela-se convencido de que
Maria Antónia e os seus desenhos
terão sido um enigma para Álvaro Siza. O sofrimento que os desenhos dela
representam merece respeito, sustenta. Ao embrenhar-se naquele mundo criado
por Maria Antónia, Bernardo Pinto de
Almeida, crítico de arte, autor do texto inserido no catálogo da exposição na
Árvore depara-se com uma artista que apesar de ter morrido muito jovem,
tinha uma obra fulgurante. A ter continuado, diz, teria sido um momento
referencial naquele período em que na sequência do modernismo apareciam no
Porto Ângelo de Sousa, Jorge Pinheiro, António Quadros, os 4 Vintes, e na
arquitetura o Alcino Soutinho, o Alves Costa, o Álvaro Siza. Para lá do
domínio técnico, os desenhos, afirma ainda Bernardo, exprimem um universo
psicológico e estético que faz dela uma artista muito próxima de uma raiz
expressionista, que na arte portuguesa não chegou a ter o reconhecimento suficiente.
Álvaro Siza concorda. São figuras muito fortes. Há um expressionismo
evidente. Alguns desenhos são mesmo violentos. Outros são dramáticos, mas essa
não foi sempre a sua opção. Por vezes entretinha-se a desenhar para os
filhos e tudo era diferente». In Valdemar
Cruz, Semanário Expresso, Edição 2245, 7 de Novembro de 2015, Revista E, código
para acesso TLKQU, +E, página 24 a 32.
Cortesia
do Expresso/JDACT