domingo, 13 de dezembro de 2015

O Quarteto de Alexandria. Clea. Lawrence Durrell. «Prendeu a tangerina entre os dentes e subiu à superfície, descrevendo uma espiral perfeita. Vai secar-te depressa. Não está frio nenhum. Faz o que te digo, despacha-te. E o senhor corcunda? Foi-se embora»

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«(…) Com um gesto de cabeça e um suspiro, fechava essas imagens pintadas no cofre de tesouros do seu espírito. De Melissa, sua mãe morta, falava menos vezes, mas quando me fazia perguntas eu recorria na mesma ao livro de histórias; mas Melissa já tinha descido, pálida estrela, abaixo da linha do horizonte, na imobilidade da morte, deixando aos outros o proscénio, às figuras vivas do baralho de cartas. A criança lançara à água uma tangerina e reclinava-se para vê-la rolar no leito arenoso da gruta. Ficara ali no fundo, trémula como uma chamazinha acariciada pelo afluir e refluir da corrente. Agora, repara, vou buscá-la. Não com a água assim gelada. Podes morrer de frio. Hoje não está frio. Repara. Ela nadava como uma lontra jovem. Da rocha que dominava a água, observando-a, reconhecia nela os olhos atrevidos e ligeiramente oblíquos de Melissa, e, em certos momentos, como um resto de sono esquecido nos cantos, o olhar sombrio e indeciso (suplicante, inquieto) de Nessim, seu pai. Recordei-me de Clea dizendo certa vez: observe bem: se uma rapariga não gosta de dançar nem de nadar nunca será uma amante perfeita. Sorri e perguntei a mim próprio qual o valor dessa afirmação, vendo aquela criaturinha mergulhar docemente na água clara e deslizar com graça para o alvo, os pés unidos com os dedos apontados para o céu. A mancha do lenço branco em torno da cintura. Prendeu a tangerina entre os dentes e subiu à superfície, descrevendo uma espiral perfeita. Vai secar-te depressa. Não está frio nenhum. Faz o que te digo, despacha-te. E o senhor corcunda? Foi-se embora.
A inopinada aparição de Mnemjian na ilha tinha-a impressionado bastante porque fora ele o portador da mensagem de Nessim. Foi um espectáculo único vê-lo atravessar a praia de seixos, com um ar grotesco de receio, como se caminhasse sobre saca-rolhas e temesse perder o equilíbrio a cada passo. Penso que pretendia demonstrar-nos que havia muitos anos que não caminhava senão sobre os melhores pavimentos do mundo civilizado. Era um citadino esquecido da terra que se calca com os pés nus. Emanava de toda a sua aparência um ar de preciosidade e de finura absolutamente incongruente nesta paisagem. Vestia um fato prateado, calçava polainas e trazia os dedos carregados de anéis. Somente o sorriso, um sorriso de bebé, continuava imutável, e o caracol abrilhantinado ainda se estampava a meio da testa.
Casei com a viúva de Halil. Actualmente sou o barbeiro mais rico do Egipto. Anunciou-me aquilo apoiando-se numa bengala de castão de prata, objecto que manifestamente manobrava há pouco tempo. O seu olho cor de malva avaliou com certo desdém a nossa instalação bastante rústica e recusou a cadeira, receando provavelmente estragar as calças. Deve levar aqui uma vida dura, hem? Falta aqui um pouco de luxo, Darley. Suspirou e acrescentou: mas agora vai voltar para junto de nós. Fez um gesto vago com a bengala para significar a hospitalidade que a cidade voltava a oferecer-nos. Quanto a mim, não posso demorar-me. Vou de regresso. Fiz este desvio simplesmente para ser agradável a Hosnani. Falava de Hosnani num tom altivo, como se agora estivessem os dois no mesmo plano social; surpreendeu-o o meu sorriso e teve o bom senso de desatar a rir antes de voltar-se de novo para assuntos graves. De qualquer maneira, não tenho tempo a perder, disse ele dando um piparote para sacudir da manga um grão de poeira. Isso tinha pelo menos o mérito de ser verdade porque o vapor de Esmirna só se detém o tempo suficiente para despachar o correio e descarregar alguns fardos: dois ou três caixotes de macaroni, alguns sacos de sulfato de cobre, uma bomba. Os habitantes da ilha têm poucas necessidades. Tomámos os dois o caminho da aldeia, atravessando o olival, conversando um com o outro. Mnemjian avançava no seu passo saltitante de pomba, mas eu sentia-me contente por poder fazer-lhe algumas perguntas a respeito da cidade, ficando a saber, pelas suas respostas, as alterações que ia encontrar, os elementos desconhecidos.
Passaram-se muitas coisas depois de ter começado a guerra. O doutor Balthazar esteve muito doente. Sabe das intrigas de Hosnani na Palestina? Toda a organização se desmantelou. Os egípcios tentam confiscar-lhe os bens. Já se apoderaram de muita coisa. Sim, agora são pobres e longe de estarem livres de apuros. Ela tem residência fixa em Karm Abu Girg. Há muito tempo que ninguém a vê. Por privilégio especial, ele trabalha como condutor de ambulância nas docas. Muito perigoso. Durante um bombardeamento perdeu um olho e um dedo.
- Nessim? Estava estupefacto. O homenzinho agitou a cabeça com importância. Esta novidade, esta imagem imprevisível do meu amigo, atingiu-me como uma bala. Santo Deus, exclamei, e o barbeiro agitou outra vez a cabeça como para aprovar o bem fundado da minha exclamação. Um duro golpe, concordou. É a guerra, Darley. Depois, bruscamente, um pensamento mais agradável atravessou-lhe o espírito e o seu sorriso de bebé alastrou-se de novo, um sorriso que reflectia somente os valores materiais do Levante. Travando-me o braço, prosseguiu: mas a guerra tem também as suas vantagens. Corto o cabelo a todo o exército. A minha barbearia está sempre cheia. Três salões, doze empregados! Há de ver, é estupendo. Como diz o nosso amigo Pombal: você agora faz a barba aos mortos enquanto eles ainda estão vivos. E soltou uma risadinha silenciosa e distinta. Pombal continua em Alexandria?» In Lawrence Durrell, O Quarteto de Alexandria, Clea, 1960, Publicações dom Quixote, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.

Cortesia PdQuixote/JDACT