domingo, 20 de dezembro de 2015

Farsa de Inês Pereira. Gil Vicente. «O seu argumento é um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. Eu vos trago hum bom marido, rico, honrado, conhecido: diz que em camisa vos quer»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…)
Mãe
Assi me fez dessa guisa
Outro, no tempo da poda.
Eu cuidei que era jôgo,
E ele... dae-o vós ao fogo!
Tomou-me tamanho riso,
Riso em todo meu siso,
E elle deixou-me logo.
Lia
Si, agora, eramá,
Também eu me ria ca
Das cousas que me dizia:
Chamava-me luz do dia:
Nunca te ôlho verá.

Se estivera de maneira
Sem ser rouca, bradár'eu;
Mas logo m'o demo deu
Catarrão e peitogueira,
Cócegas e cór de rir,
E coxa pera fugir,
E fraca pera vencer:
Porém pude-me valer
Sem me ninguém acudir...
O demo (e não pode al ser)
Se chantou no corpo dele.
Mãe
Mana, conhecia-te elle?
Lia
Mas queria-me conhecer!
Mãe
Vistes vós tamanho mal?
Lia
Eu m'irei ao Cardial,
E far-lhe-ei assi mesura,
E contar-lhe-ei a aventura
Que achei no meu olival.
Mãe
Não estás tu arranhada,
De te carpir, nas queixadas?
Lia
Eu tenho as unhas cortadas,
E mais estou tosquiada:
E mais pera que era isso?
E mais pera que é o siso?
E mais no meio da requesta
Veio hum homem de hua bêsta,
Que em vê-lo vi o p'raíso,

E soltou-me, porque vinha
Bem contra sua vontade.
Porém, a falar a verdade,
Já eu andava cansadinha:
Não me valia rogar
Nem me valia chamar:
Áque de Vasco de Foes,
Acudi-me, como soes!
E elle senão pegar:

Mais mansa, Lianor Vaz,
Assi Deos te faça sancta.
Trama te dê na garganta!
Como! isto assi se faz?
Isto não revela nada.
Tu não ves que sou casada?
Mãe
Dera-lhe, ma hora, boa,
E mordêra-lo na c’roa.
Lia
Assi! fôra excommungada.

Não lhe dera um empuxão,
Porque sou tão maviosa,
Que he cousa maravilhosa.
E esta he a concrusão.
Leixemos isto. Eu venho
Com grande amor que vos tenho,
Porque diz o exemplo antigo
Que a amiga e o amigo
Mais aquenta que o bom lenho.

Ines Pereira he concertada
Pera casar com alguém?
Mãe
Até gora com ninguém
Não he ella embaraçada.
Lia
Eu vos trago hum casamento
Em nome do Anjo bento:
Filha, não sei se vos praz.
Ines
E quando, Lianor Vaz?
Lia
Eu vos trago aviamento.
Ines
Porém, não hei de casar
Senão com hom’eavisado.
Ainda que pobre e pelado,
Seja discreto em falar
Lia
Eu vos trago hum bom marido,
Rico, honrado, conhecido:
Diz que em camisa vos quer
Ines
Primeiro eu hei de saber
Se he parvo, se sabido.
Lia
Nesta carta que aqui vem
Pera vós, filha, d'amores,
Veredes vós, minhas flores,
A discrição que elle tem.
Ines
Mostrae-m’a cá, quero ver
Lia
Tomae: e sabedes vós ler?»

In Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira, 1523, Biblioteca Digital, colecção Clássicos da Literatura Portuguesa, Porto Editora.

CortesiaPEditora/JDACT