segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

A Cultura Integral do Indivíduo. Problema Central do Nosso Tempo. 1933. Bento de Jesus Caraça. «Por que razão o estado social saído da revolução francesa não garantiu até hoje essa identificação da individualidade com a colectividade?»

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«(…) A marcha para um estado superior da orgânica, para a supressão do antagonismo entre o individual e o colectivo é permanente, simplesmente o caminho seguido não é direito e fácil, é antes um caminho tortuoso, sempre ascendente, la route en lacets qui monte de que falava Renan. Que essa aquisição de um estado superior de unidade só pode fazer-se pela luta e através de contradições, é lei fundamental da vida; não há que pretender, fora da realidade, modificá-la, mas sim que interpretá-la, compreendê-la e actuar em consequência. Cada fase da luta é um passo novo dado no caminho para a unidade do individual e do colectivo; ela interessa cada vez mais as camadas profundas, que assim surgem progressivamente para a luz, se arrancam a si mesmas da treva e conquistam um lugar ao sol. Na época actual, estamos vivendo precisamente uma fase dessa luta, a mais ampla e mais crua de todos os tempos. O que é que lhe dá essa amplitude e essa crueza até hoje ainda não atingidas? Para o vermos, temos que recuar um pouco. Pelo final do século XV, começa a aparecer no mundo ocidental uma classe cuja intervenção nas relações sociais se torna cada vez mais frequente e mais vigorosa. Serve-lhe de suporte económico a extensão crescente das relações comerciais com outras partes do mundo, a aparição de inventos importantes, como a imprensa, o desenvolvimento das ciências de observação que, tendo tido em Rogério Bacon o seu precursor, deviam contar nos séculos XVI e XVII com os nomes brilhantes de Leonardo da Vinci, Copérnico, Kepler e Galileu.
Durante estes séculos e os seguintes, o peso dessa classe nova não cessou de aumentar e a luta contra a então classe detentora do poder foi crescendo em intensidade. Essa luta feriu-se em primeiro lugar contra a Igreja que, omnipotente durante toda a Idade Média, estava no entanto a braços com uma grave crise interior e via escaparem-lhe lentamente das mãos as alavancas mercê das quais até aí desfrutara os benefícios de uma hegemonia material e espiritual. Luta cruenta foi essa, a de um organismo corrompido que queria continuar a sobreviver-se, luta a que não faltaram, ao lado de guerras sangrentas, os episódios mais dramáticos, como o suplício de Giordano Bruno e o processo monstruoso movido a Galileu. Alcançada porém a vitória da concepção laica do Estado e dissipada em Westfália a esperança de continuação da soberania papal, pelo divórcio do Sacerdócio e do Império, pareceria que a nova classe deveria definitivamente ascender à direcção da sociedade, impondo uma ordem nova. Tal não se deu porém. O conflito religioso, por maior acuidade que tivesse revestido, não interessava os alicerces do edifício; esses eram trabalhados por outras correntes e a luta ia continuar noutro plano, o político-económico.
Vemos assim aparecer, na segunda metade do século XVII, várias concepções quanto à natureza e legitimidade do Estado, concepções que oscilavam entre dois pólos extremos: a do Estado justificado na medida em que assegura e promove a defesa da liberdade individual e propicia as condições de uma existência racional, única verdadeiramente humana, Espinosa; a do Estado consubstanciado com uma pessoa sagrada, cuja actuação tem um só controlo, o da sua própria consciência, inspirada directamente por Deus, único a quem o soberano tem que dar contas, Bossuet. Triunfou momentaneamente a tese de Bossuet, na pessoa de Luís XIV; a de Espinosa deveria esperar pelo século XVIII para que lhe fosse dada uma realização parcial na grande transformação que se avizinhava. Por várias razões, que seria longo enumerar aqui, foi a França o ponto nevrálgico das contradições e conflitos dessa época; lá se concentrou a actividade dos grandes individualistas revolucionários, obreiros espirituais da revolução que havia de abrir uma era nova na História.
A nova classe, que vimos começar a manifestar-se alguns séculos antes, inscreveu na sua bandeira as reivindicações fundamentais formuladas por esses homens, e assim tornou possível um novo acordo, numa base ampla, entre o individual e o colectivo. Quando esses homens reclamavam o reconhecimento dos direitos do indivíduo, não faziam mais que pretender subtrair a colectividade ao poderio de uma classe restrita e, portanto, reforçando a personalidade individual, dar, por isso mesmo, uma força nova ao agregado. O grande erro dos individualistas de hoje é o conservarem-se agarrados à letra das fórmulas, sem notarem que os termos têm agora um sentido novo que lhe é emprestado pela diferença fundamental das circunstâncias. Então, por não haver liberdade reconhecida expressamente, os interesses gerais exigiam a luta por esse reconhecimento; hoje, em que dela se usou e abusou criminosamente, os mesmos interesses gerais exigem uma limitação, não do uso mas do abuso. Desenvolvimento e reforçamento da personalidade, sim, tarefa essencial, mas que eles sejam permitidos e propiciados a todos. Por que razão o estado social saído da revolução francesa não garantiu até hoje essa identificação da individualidade com a colectividade?
A burguesia, após a sua ascensão ao poder, não resistiu ao anquilosamento que vimos atrás ser característica essencial das classes dirigentes. Depressa cessou a harmonia dos seus interesses com os interesses gerais. Os seus fundamentos económicos, livre concorrência e propriedade privada, cedo se tornaram, pela acção implacável da evolução acelerada do século XIX, em armas terríveis que ela brandiu em seu exclusivo proveito. A civilização de base capitalista tornou inoperantes os princípios de liberdade individual e de igualdade, para não falar já no da fraternidade que só por sarcasmo se pode pretender que esteja incluído hoje entre as ideias dominantes da governação. Um elemento novo entrou em cena, a máquina, cujo desenvolvimento permitiu, como diz Ayguesparse no seu luminoso estudo sobre Maquinismo e Cultura, uma formidável síntese entre uma classe -a burguesia, e uma doutrina económica, o capitalismo. E essa síntese, que teria sido fecunda se a máquina tivesse sido posta, como devia, ao serviço do homem, tornou-se, pelo contrário, monstruosa, porque produziu, não a emancipação, mas escravização económica do trabalhador. O homem escravo da coisa -eis a grande condenação, no campo moral, do regime social contemporâneo». In Bento de Jesus Caraça, 1933, União Cultural Mocidade Livre, Cadernos da Seara Nova, 1939.

Cortesia de Seara Nova/JDACT