Com
a devida vénia a Valdemar Cruz e ao Semanário Expresso
«Desenhava como ninguém e morreu aos 32 anos
nos braços de Álvaro Siza. O arquiteto assumiu uma viuvez eterna, com as causas
da morte a alimentarem especulações. O Expresso conta pela primeira vez a
história da mulher cuja obra chega agora à Gulbenkian». In texto
de Valdemar Cruz
«(…)
O pudor determina a opção do arquiteto. Há uma obrigação de decoro na abordagem
de um drama familiar com sequelas inimagináveis para quem não as vive. O
apoio das duas avós foi essencial, mas há uma coisa que é insubstituível. A mãe
faz uma falta que nem se imagina, virá a dizer mais tarde Álvaro Siza, num
domingo de manhã, durante uma rara conversa tida na solidão do seu escritório
com vista para a serenidade das águas do Douro. A oportunidade para avançar
coincide com uma outra importante decisão do arquiteto. Na sequência da
definição de destinos para o seu espólio, dividido entre o Centro Canadiano de
Arquitetura, em Montreal, a Fundação de Serralves e a Fundação Gulbenkian, Siza
opta por iniciar o processo, em curso, de doação de uma centena de desenhos de Maria Antónia ao Centro de Arte Moderna
da Gulbenkian. Estávamos no final de julho e, para alegria depois manifestada
pelos filhos, abre-se à possibilidade de ser lançado um olhar sobre a vida e a
obra da mulher, nascida a 25 de maio de 1940 na Avenida da Boavista. Que
maravilha, ainda bem que se vai falar da minha mãe, são as primeiras
palavras de Joana, 51 anos, a segunda filha do casal Siza, mal inicia uma
conversa à volta das memórias de alguém para quem aquela figura é sobretudo o
resultado da reconstrução de algumas memórias pessoais com as narrativas por
outros proporcionadas. Não obstante ter apenas 8 anos à data da morte, Joana
assegura ter assistido à dor mais funda da mãe. O filho mais velho,
Álvaro, 53 anos, hoje um arquiteto com uma obra muito relevante, tinha 10 anos
e recorda a evocação do drama com a naturalidade de quem sabe que todas as
pessoas tiveram uma história. Também ele sente como que um alívio por esta
espécie de cair de muros para, de forma descomplexada, se falar de uma mulher
cuja obra admira e sente merecer maior divulgação, desde logo pela imensidão de
sentimentos expressos através dos desenhos. Maria Antónia nasce oito anos após o casamento dos pais, Alberto
Leite, empregado de escritório, apreciador de arte e pintor nas horas vagas, e
Maria Luísa Marinho, filha e neta de industriais têxteis. A irmã, Luísa
Marinho, quatro anos mais velha, recorda-se de uma Totó vivaça, muito
expansiva, mas a quem desde nascença fora detetado um leve sopro cardíaco.
Com uma educação austera e um ambiente familiar muito marcado pelos anos da II
Guerra Mundial, Maria Antónia, tal
como as irmãs, começa por frequentar o Colégio Nossa Senhora do Rosário,
propriedade do Instituto das Religiosas do Sagrado Coração de Maria em Portugal.
Passa depois como interna pelo Colégio do Sardão, em Oliveira do Douro, Vila
Nova de Gaia, pertencente ao Instituto das Irmãs de Santa Doroteia. Frequenta
ainda o Liceu Carolina Michaelis. A infância e adolescência decorrem no
ambiente próprio de uma família grande e com posses. Terminado o ano escolar, o
tempo reparte-se entre os quase três meses de férias nas praias da Foz, com
passagens, a partir de 1945, e sempre em setembro, por uma casa de férias
comprada pelo pai a umas centenas de metros do início da escadaria do Bom
Jesus, em Braga. Aos 17 anos entra na Escola de Belas Artes e é todo um novo
caminho a abrir-se para uma jovem oriunda de uma família conservadora, marcada
por uma grande religiosidade e pouco disponível para aceitar a abertura nos
costumes. À época bastava ter o então 5º ano dos liceus, atual 9º ano, para
aceder a uma escola onde começavam a cruzar-se jovens das mais diversas
proveniências destinados a marcarem a segunda metade do século XX português, na
pintura, na escultura ou na arquitetura. José Rodrigues, Ângelo de Sousa,
Armando Alves, Álvaro Siza, Alves Costa, Jorge Pinheiro, José Grade, entre
outros. Partilha o ritmo escolar com grandes amigas, como Luísa Brandão, e
tanta gente responsável por um ambiente sem paralelo, muito incentivado pelo
diretor da escola, Carlos Ramos. Luísa, a irmã, também já lá andava e fazia
inclusive parte de uma comissão de receção dos caloiros. Maria Antónia dá nas vistas mal chega. Desde logo pela sua beleza.
Depois, pela qualidade do desenho. Ainda no primeiro ano, Carlos Ramos chama-a
por ter visto um dos seus trabalhos, felicita-a e vaticina-lhe: se continuar
assim, vai muito longe. Foi uma coisa que lhe deu muita satisfação e muito
entusiasmo, admite Siza. Nem sempre são fáceis os caminhos para quem ousa
desviar-se da norma ou dos consensos estabelecidos. É de novo o arquiteto a
recordar um episódio ocorrido num outro ano, aquando da habitual exposição de
trabalhos dos alunos na Aula Magna. Tratava-se de um momento importante da
escola, com discurso do diretor e elaboração de um catálogo. Dessa vez, Maria Antónia não tem nenhum desenho
selecionado e o já namorado, Álvaro Siza, mais velho sete anos, resolve
questionar um dos responsáveis pela escolha. O que me foi dito é que saía do
espírito da exposição. Realmente saía. Era melhor, comenta com cáustica
ironia. Em boa verdade, a questão, diz agora, nem era ser melhor ou não.
Houve uma fase em que na linha da frente estava o abstrato. Isso ela nunca fez.
Tinha uma especial atenção pelo corpo. Na maior parte daqueles desenhos não há
paisagem. É o corpo. Ambiente há, mas por outro meio. Caso tivesse vivido
mais tempo, poderia ter tido grande notoriedade. Tanto mais que, constata, poucos
anos depois aparece a Paula Rego, por exemplo. O figurativo, na altura dela
considerado uma coisa do passado, volta e ganha nova cidadania. Luísa
Brandão, arquiteta, madrinha do primeiro filho do casal Siza, Álvaro, como o
pai, para sempre Alvarinho para os mais chegados, toda a vida terá conhecido Maria Antónia, em particular dos tempos
da Foz, onde a neta do industrial têxtil passava grandes temporadas de praia.
Nas Belas Artes aprofundam a amizade e Luísa, que chega a ser casada com
Alexandre Alves Costa, assegura que Totó podia, se quisesse, ser a melhor aluna
do curso. Porém, não aspirava, sequer a ser uma grande artista. Era genial
a desenhar, mas tinha problemas porque muitas vezes não conseguia acabar as
coisas. A relação com os professores era paradoxal. Segundo Luísa, não
faziam dela o que queriam. Ela é que desenhava como queria e não se deixava
levar por ninguém». In Valdemar Cruz, Semanário Expresso, Edição
2245, 7 de Novembro de 2015, Revista E, código para acesso TLKQU, +E, página 24
a 32.
Cortesia
do Expresso/JDACT