terça-feira, 22 de dezembro de 2015

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «Escanhoado e penteado pelo barbeiro, personagem que não tinha dignidade para comungar com ele na sua capela, vestiu-se com a ajuda do camareiro, este, sim, estava autorizado a fazer-lhe companhia nas rezas que se prolongariam por toda a manhã»

jdact e wikipedia

O infante Fernando não quer ficar
«(…) Já disposto a dar por finda a entrevista, esquecendo a disponibilidade que disse dispensar ao irmão, Duarte I procurou fixá-lo nos olhos, de maneira a medir o ascendente que sempre teve sobre ele. O que viu foi outra coisa. A energia que Fernando havia demonstrado momentos antes, tanto nos gestos como nas palavras, resumia-se no fim de contas à lição pouco estudada e às réplicas ensaiadas por algum mestre na arte de representar. Chamado à ordem pelo cintilar reprovador dos olhos de Duarte, o infante vacilou, sentiu-se descomposto, pois o suor que lhe molhava a pele prometia passar ao bonito traje que nesse dia vestiu. Longe de ser vaidoso ou ostensivo, Fernando entendeu mesmo assim apresentar-se ao rei vestido com as suas melhores roupas, dado que o assunto merecia ser explicado com todas as armas e cuidados. Nesse dia levantou-se cedo, cumpriu as primeiras rezas sem sair dos aposentos e daí a pouco deslocou-se para se enfiar em capela própria, prosseguindo o seu diálogo com a divindade. Nos pequenos intervalos que as obrigações sagradas lhe impunham, os criados expuseram-lhe os passos que tinha de dar naquele dia e os compromissos aos quais não devia faltar, particularmente o encontro que tinha agendado com o rei. Não precisariam de o fazer. O infante não pensara noutra coisa desde que abrira os olhos, ainda o sol não vencera o horizonte.
Escanhoado e penteado pelo barbeiro, personagem que não tinha dignidade para comungar com ele na sua capela, vestiu-se com a ajuda do camareiro, este, sim, estava autorizado a fazer-lhe companhia nas rezas que se prolongariam por toda a manhã e por todos os santos. Quando as sombras começaram a encurtar, bem a pino sobre as cabeças, decidiu vestir-se com tempo, ajudado pelo criado mais íntimo. Após receber as ordens, o moço de câmara apareceu-lhe com urna alcândora, espécie de camisa de gola alta e umas calças de lã muito justas, que depois de vestidas lhe desenharam bem os contornos das coxas. Esta peça vestia-se em duas tentativas, um elemento de cada vez, porque embora fossem semelhantes aos collants de hoje, enfiavam-se individualmente. Calçou depois umas pontilhas excessivamente pontiagudas, de pele, esforçadamente enfiadas pelo sapateiro, outro que não metia os pés perto do seu altar, sentindo algum desconforto por os sapatos lhe apertarem os dedos. Mesmo assim decidiu mantê-los. Concordavam com o resto da farpela e valia a pena algum sacrifício em prol da aparência.
Com cuidado, vestiu um saio que o camareiro seleccionou, de veludo verde-escuro, bem curto, para não fugir à moda, um exagero para os que não estavam acostumados às novidades. O cinto que pôs ostentava uma fivela de ouro cravejada de brilhantes, bem apertado na zona da cintura, o que insinuava mais a elegância das suas poucas carnes. Sentir-se-ia melhor depois de colocar um sombreiro do mesmo tecido e da mesma cor do saio. O chapéu, ligeiramente enfiado na cabeça, estreitava no extremo superior do corpo cilíndrico, alargando depois na outra extremidade para deixar entrar confortavelmente a cabeça e dar à copa o alinhamento que esta precisava. No meio, incorporou-lhe um diadema de prata, engastado de esmeraldas, quase um exibicionismo nunca visto no infante. Mas este dia era diferente. Fazia questão de alardear alguma exuberância na pose, um espectáculo que fazia questão de mostrar para suplantar o irmão, pelo menos no vestir, pois sabia como Duarte era modesto nas roupas que usava.
Não deixou também de ostentar, nem podia, as insígnias do Mestrado de Avis, pois era impensável dispensá-las por mais que o cargo se revelasse pouco compensador. Assim vestido, pelo menos nesse momento sentiu-se tão importante como qualquer um, sossegando-lhe o nervoso miudinho desde que o dia abriu as janelas. Aquele dia constituía-se para o infante Fernando como o mais importante da sua vida. Considerava-o assim por não ter tido outros de grande relevância, mas sobretudo porque esta data era como que um marco na sua futura autonomia. Sentia-se corajoso, capaz de enfrentar o homem mais poderoso de Portugal, até que o irmão lhe permitisse substituir uma vida passada de desânimos por outra virtuosa. Eis porque me visto no momento presente das melhores roupas que tenho e uso as mais valiosas jóias que possuo, uma ostentação quase agressiva comparada com a simplicidade de Duarte. No entanto não me deixo enganar, automotivou-se o infante, o que não pode ser feito de um dia para o outro no carácter, na maneira de ser, permite-nos consegui-lo de forma expedita através do que envergamos. A nossa segunda pele produz falsidades tão imediatas, tão rápidas e eficazes, tanto quanto uma vida inteira não consegue». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de Cdo Autor/JDACT