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O infante Fernando não quer ficar
«(…) Já disposto a dar
por finda a entrevista, esquecendo a disponibilidade que disse dispensar ao
irmão, Duarte I procurou fixá-lo nos olhos, de maneira a medir o ascendente que
sempre teve sobre ele. O que viu foi outra coisa. A energia que Fernando havia
demonstrado momentos antes, tanto nos gestos como nas palavras, resumia-se no
fim de contas à lição pouco estudada e às réplicas ensaiadas por algum mestre
na arte de representar. Chamado à ordem pelo cintilar reprovador dos olhos de
Duarte, o infante vacilou, sentiu-se descomposto, pois o suor que lhe molhava a
pele prometia passar ao bonito traje que nesse dia vestiu. Longe de ser vaidoso
ou ostensivo, Fernando entendeu mesmo assim apresentar-se ao rei vestido com as
suas melhores roupas, dado que o assunto merecia ser explicado com todas as armas
e cuidados. Nesse dia levantou-se cedo, cumpriu as primeiras rezas sem sair dos
aposentos e daí a pouco deslocou-se para se enfiar em capela própria,
prosseguindo o seu diálogo com a divindade. Nos pequenos intervalos que as
obrigações sagradas lhe impunham, os criados expuseram-lhe os passos que tinha
de dar naquele dia e os compromissos aos quais não devia faltar, particularmente
o encontro que tinha agendado com o rei. Não precisariam de o fazer. O infante
não pensara noutra coisa desde que abrira os olhos, ainda o sol não vencera o
horizonte.
Escanhoado e penteado
pelo barbeiro, personagem que não tinha dignidade para comungar com ele na sua
capela, vestiu-se com a ajuda do camareiro, este, sim, estava autorizado a
fazer-lhe companhia nas rezas que se prolongariam por toda a manhã e por todos
os santos. Quando as sombras começaram a encurtar, bem a pino sobre as cabeças,
decidiu vestir-se com tempo, ajudado pelo criado mais íntimo. Após receber as
ordens, o moço de câmara apareceu-lhe com urna alcândora, espécie de camisa de
gola alta e umas calças de lã muito justas, que depois de vestidas lhe
desenharam bem os contornos das coxas. Esta peça vestia-se em duas tentativas,
um elemento de cada vez, porque embora fossem semelhantes aos collants
de hoje, enfiavam-se individualmente. Calçou depois umas pontilhas
excessivamente pontiagudas, de pele, esforçadamente enfiadas pelo sapateiro,
outro que não metia os pés perto do seu altar, sentindo algum desconforto por
os sapatos lhe apertarem os dedos. Mesmo assim decidiu mantê-los. Concordavam com
o resto da farpela e valia a pena algum sacrifício em prol da aparência.
Com cuidado, vestiu um saio
que o camareiro seleccionou, de veludo verde-escuro, bem curto, para não fugir
à moda, um exagero para os que não estavam acostumados às novidades. O cinto
que pôs ostentava uma fivela de ouro cravejada de brilhantes, bem apertado na
zona da cintura, o que insinuava mais a elegância das suas poucas carnes. Sentir-se-ia
melhor depois de colocar um sombreiro do mesmo tecido e da mesma cor do saio.
O chapéu, ligeiramente enfiado na cabeça, estreitava no extremo superior do
corpo cilíndrico, alargando depois na outra extremidade para deixar entrar confortavelmente
a cabeça e dar à copa o alinhamento que esta precisava. No meio, incorporou-lhe
um diadema de prata, engastado de esmeraldas, quase um exibicionismo nunca
visto no infante. Mas este dia era diferente. Fazia questão de alardear alguma
exuberância na pose, um espectáculo que fazia questão de mostrar para suplantar
o irmão, pelo menos no vestir, pois sabia como Duarte era modesto nas roupas
que usava.
Não deixou também de
ostentar, nem podia, as insígnias do Mestrado de Avis, pois era impensável
dispensá-las por mais que o cargo se revelasse pouco compensador. Assim
vestido, pelo menos nesse momento sentiu-se tão importante como qualquer um, sossegando-lhe
o nervoso miudinho desde que o dia abriu as janelas. Aquele dia constituía-se para
o infante Fernando como o mais importante da sua vida. Considerava-o assim por
não ter tido outros de grande relevância, mas sobretudo porque esta data era
como que um marco na sua futura autonomia. Sentia-se corajoso, capaz de
enfrentar o homem mais poderoso de Portugal, até que o irmão lhe permitisse
substituir uma vida passada de desânimos por outra virtuosa. Eis porque me
visto no momento presente das melhores roupas que tenho e uso as mais valiosas
jóias que possuo, uma ostentação quase agressiva comparada com a simplicidade
de Duarte. No entanto não me deixo enganar, automotivou-se o infante, o que não
pode ser feito de um dia para o outro no carácter, na maneira de ser,
permite-nos consegui-lo de forma expedita através do que envergamos. A nossa segunda
pele produz falsidades tão imediatas, tão rápidas e eficazes, tanto quanto uma
vida inteira não consegue». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do
Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor,
Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.
Cortesia de Cdo
Autor/JDACT