sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

O Nascimento do Mundo Moderno. Stephen Greenblatt. «A sua ocupação era a de ‘scriptor’, ou seja, redactor profissional de documentos na burocracia papal, e, empregando sagacidade e astúcia, tinha chegado à invejada posição de secretário apostólico»

Cortesia de wikipedia

O Caçador de Livros
«(…) Se tivesse tentado explicar a um curioso o que estava querendo ali, o mistério de sua identidade teria se aprofundado ainda mais. Numa cultura com uma alfabetização muito limitada, um interesse por livros já era bizarro. E como Poggio poderia explicar a natureza ainda mais bizarra de seus interesses particulares? Ele não estava em busca de livros de horas, ou missais, ou hinários cujas belíssimas iluminuras e encadernações esplêndidas deixassem óbvio o seu valor até para os analfabetos. Esses livros, alguns incrustados de jóias e com páginas com bordas de ouro, muitas vezes ficavam trancados em caixas especiais ou acorrentados aos púlpitos e às prateleiras, para que leitores de mãos leves não pudessem fugir com eles. Mas estes não tinham encantos especiais para Poggio. E ele também não se sentia atraído pelos tomos lógicos, médicos ou jurídicos que constituíam as ferramentas de prestígio das elites profissionais. Esses livros tinham o poder de impressionar e até intimidar quem não sabia lê-los. Eram cercados de uma mágica social, como a que normalmente se associa a eventos desagradáveis: um processo legal, um inchaço doloroso na virilha, uma acusação de bruxaria ou de heresia. Uma pessoa comum teria entendido que volumes desse tipo tinham dentes e garras, e teria entendido por que uma pessoa inteligente poderia estar atrás deles. Mas aqui também a indiferença de Poggio era desconcertante.
O estrangeiro estava indo a um mosteiro, mas não era padre, teólogo ou inquisidor, e não estava em busca de livros de oração. Procurava velhos manuscritos, muitos deles mofados, carcomidos de traças e praticamente indecifráveis até para os leitores mais treinados. Se as folhas de pergaminho em que esses livros eram escritos ainda estivessem intactas, teriam certo valor monetário, já que poderiam ser cuidadosamente raspados com facas, amaciados com talco e usados novamente. Mas Poggio não estava no ramo de pergaminhos usados, na verdade detestava quem raspava as letras antigas. Ele queria ver o que estava escrito ali, mesmo que a grafia fosse intricada e difícil, e estava interessado acima de tudo em manuscritos que tivessem quatrocentos ou quinhentos anos, que viessem, portanto do século X ou até antes. A não ser para um punhado de pessoas na Alemanha, essa busca, caso Poggio tivesse exposto o que era, teria parecido estranha. E teria parecido ainda mais estranha se Poggio tivesse explicado que na verdade não tinha o menor interesse no que foi escrito quatrocentos ou quinhentos anos atrás. Ele desprezava aquela época, a considerava um poço de superstição e ignorância. O que realmente queria achar eram palavras que nada tinham a ver com o momento em que foram escritas no pergaminho antigo, palavras que na melhor das hipóteses não estivessem contaminadas pelo universo mental do reles escriba que as copiara. Aquele escriba, Poggio esperava, estava aplicada e acuradamente copiando um pergaminho ainda mais antigo, feito por outro escriba cuja vida humilde também não tinha qualquer interesse para o caçador de livros a não ser o facto de ter deixado essa marca. Se a maré de sorte quase miraculosa se mantivesse, o manuscrito anterior, havia muito desaparecido na poeira, era por sua vez uma cópia fiel de um manuscrito mais antigo e aquele manuscrito, cópia de um outro. Agora finalmente a caçada ficava interessante para Poggio, e o coração de caçador dentro do peito dele batia acelerado. Os rastros estavam levando de volta a Roma, não à Roma contemporânea, da corrompida corte papal, das intrigas, da debilidade política e dos surtos periódicos de peste bubónica, mas a Roma do Fórum e do Senado e de um latim cuja beleza cristalina o enchia de encanto e de desejo por um mundo perdido.
O que isso tudo poderia querer dizer para qualquer sujeito de pés no chão, no sul da Alemanha, em 1417? Ao ouvir Poggio, um supersticioso poderia ter suspeitado de um caso singular de feitiçaria, a bibliomancia; um homem mais sofisticado poderia ter diagnosticado uma obsessão psicológica, a bibliomania; um homem de fé poderia ter-se perguntado por que uma alma sadia sentiria uma atracção passional pelo tempo anterior ao momento em que o Salvador trouxe aos pobres pagãos a promessa da redenção. E todos teriam feito a óbvia pergunta: a quem este homem serve? O próprio Poggio teria encontrado dificuldade para responder. Até pouco tempo antes ele era um servo do papa, como tinha sido de vários outros pontífices romanos. A sua ocupação era a de scriptor, ou seja, redactor profissional de documentos na burocracia papal, e, empregando sagacidade e astúcia, tinha chegado à invejada posição de secretário apostólico. Ele ficava assim à disposição para escrever as palavras do papa, registar as suas decisões soberanas, redigir num latim elegante a sua extensa correspondência internacional. Num esquema formal de corte, em que a proximidade física com o soberano absoluto era um bem de importância central, Poggio era um homem importante. Ele escutava enquanto o papa sussurrava alguma coisa ao seu ouvido; respondia com outro sussurro; conhecia o significado dos sorrisos e das caras fechadas do papa. Tinha acesso, como sugere a própria palavra secretário, aos segredos do papa. E aquele papa era cercado de muitos segredos». In Stephen Greenblatt, The Swerve, O Nascimento do Mundo Moderno, A Virada, 2011, tradução de Caetano Galindo, Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-114-4.

Cortesia da CdasLetras/JDACT