Como
conheci o Fernando
«(…) Como não era costume na época
andarem as raparigas sozinhas, fui acompanhada por uma empregada de casa de
minha irmã, com quem eu vivia na altura, mãe do meu sobrinho, o futuro poeta
Carlos Queiroz. Quando chegámos e batemos à porta do escritório, ainda estava
fechado, pelo que tivemos que esperar. A certa altura vimos a subir a escada um
senhor todo vestido de preto (soube mais tarde que estava de luto pelo
padrasto), com um chapéu de aba revirada e debruada, óculos e laço ao pescoço.
Ao andar, parecia não pisar o chão. E trazia, coiso mais natural, as calças entaladas
nas polainas. Não sei porquê, aquilo deu-me uma terrível vontade de rir e foi
com grande esforço que lá consegui dizer que ia responder ao anúncio, quando
ele, timidamente, nos perguntou o que desejávamos. Foi esta a minha primeira
imagem do Fernando.
Muito atencioso, disse-nos então
que esperássemos um bocadinho, porque ele não era o dono do escritório.
Entrámos e, passado um bocado, apareceu o primo. Perguntou quem era a interessada,
e começámos a conversar. O Fernando assistiu a tudo, sentado a uma secretária,
virado para mim, e com um ligeiro sorriso, de quem estava a achar graça. Passados
três dias fui chamada. Foi o próprio Fernando que me recebeu nesse dia. Já lá
estava quando eu cheguei, estava mesmo à minha espera. Sentou-se numa cadeira, junto
da minha secretária e destinou-me o trabalho: endereços pelo anuário comercial.
A certa altura disse-me timidamente: … sabe, queria preveni-la duma coisa. É
que a passadeira da escada tem um buraco e não vá a menina cair... Depois
calou-se e, passado um bocado, disse: … há outra coisa de que queria preveni-la;
é que o outro sócio, o Valladas, é um pouco rude. Ele não é má pessoa, sabe,
mas é da GNR. e não vá a menina chocar-se com qualquer coisa... Tudo isto foi
dito com um ar circunspecto, mas cheio de amabilidade. Depois começaram, os olhares...,
a corte... Passou-se uma coisa engraçada, logo nesse primeiro dia. Eu estava
sentada a escrever à máquina. Alguém entrou no gabinete, não me lembro agora
quem, e disse: … ó Fernando, não estava mesmo a apetecer dar um beijo naquele
pescoço? … Eu não acho, respondeu ele secamente, maçado mesmo. Mais tarde
disse-me que já eram ciúmes...
O Fernando era muito ciumento, mas
não se zangava, não dizia nada; sofria. Não gostava que eu usasse decotes, nem
falasse com rapazes. Um dia disse-me: … Hoje, pela primeira vez, tive ciúmes
dos olhos do meu primo. … Porquê?, perguntei. … Porque eles viram-te e eu não
te vi. Isto passou-se numa segunda-feira e eu por acaso no domingo tinha encontrado
o primo dele na rua. Outra vez, mandou-me um bilhetinho, que dizia: … estavas a
fazer olhos ternos ao Pantoja. Mas ele gostava de me fazer ciúmes a mim, para
ver a minha reacção. Um dia, veio com uma história que se tinha passado com ele
no eléctrico. Comentando a influência e a força do olhar de certas pessoas,
contava ele que, ao fixar a cabeça loura de uma senhora que ia sentada à sua frente,
ela se virara de repente para ele e o fixara insistentemente. Percebi logo qual
era a intenção da história, e durante muito tempo falei-lhe na senhora loura,
fingindo ter ciúmes. Ele gostava imenso e tinha um trabalhão a tentar convencer-me
de que não havia senhora loura nenhuma.
O Fernando era muito supersticioso,
especialmente com cães a ganir. Dizia que quando ia para casa à sua passagem,
os cães ganiam, e que isso significava haver qualquer coisa nele que os fazia
ganir.
A
Primeira carta
Um dia faltou a luz no escritório.
O Freitas não estava e o Osório, o grumete, tinha saído a fazer um recado. O
Fernando foi buscar um candeeiro de petróleo, acendeu-o, e pô-lo em cima da
minha secretária. Um pouco antes da hora de saída, atirou-me um bilhetinho para
cima da secretária, que dizia: peço-lhe que fique. Eu fiquei, na expectativa.
Nessa altura, já eu me tinha apercebido do interesse do Fernando por mim, e eu,
confesso, também lhe achava uma certa graça...
Lembro-me que estava em pé, a
vestir o casaco, quando ele entrou no meu gabinete. Sentou-se na minha cadeira,
pousou o candeeiro que trazia na mão e, virado para mim, começou de repente a
declarar-se, como Hamlet se declarou a Ofélia: … oh, querida Ofélia! Meço mal
os meus versos; careço de arte para medir os meus suspiros; mas amo-te em
extremo. Oh!, até do último extremo, acredita! Fiquei perturbadíssima, como é
natural, e, sem saber o que havia de dizer, acabei de vestir o casaco e
despedi-me precipitadamente». In Fernando Pessoa, Cartas de Amor,
Organização de David Mourão Ferreira, preâmbulo de Maria da Graça Queiroz,
Lisboa, Edições Ática, 1978.
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