segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Cartas de Amor. Fernando Pessoa. «O Fernando era muito supersticioso, especialmente com cães a ganir. Dizia que quando ia para casa à sua passagem, os cães ganiam, e que isso significava haver qualquer coisa nele que os fazia ganir»

jdact e wikipedia

Como conheci o Fernando
«(…) Como não era costume na época andarem as raparigas sozinhas, fui acompanhada por uma empregada de casa de minha irmã, com quem eu vivia na altura, mãe do meu sobrinho, o futuro poeta Carlos Queiroz. Quando chegámos e batemos à porta do escritório, ainda estava fechado, pelo que tivemos que esperar. A certa altura vimos a subir a escada um senhor todo vestido de preto (soube mais tarde que estava de luto pelo padrasto), com um chapéu de aba revirada e debruada, óculos e laço ao pescoço. Ao andar, parecia não pisar o chão. E trazia, coiso mais natural, as calças entaladas nas polainas. Não sei porquê, aquilo deu-me uma terrível vontade de rir e foi com grande esforço que lá consegui dizer que ia responder ao anúncio, quando ele, timidamente, nos perguntou o que desejávamos. Foi esta a minha primeira imagem do Fernando.
Muito atencioso, disse-nos então que esperássemos um bocadinho, porque ele não era o dono do escritório. Entrámos e, passado um bocado, apareceu o primo. Perguntou quem era a interessada, e começámos a conversar. O Fernando assistiu a tudo, sentado a uma secretária, virado para mim, e com um ligeiro sorriso, de quem estava a achar graça. Passados três dias fui chamada. Foi o próprio Fernando que me recebeu nesse dia. Já lá estava quando eu cheguei, estava mesmo à minha espera. Sentou-se numa cadeira, junto da minha secretária e destinou-me o trabalho: endereços pelo anuário comercial. A certa altura disse-me timidamente: … sabe, queria preveni-la duma coisa. É que a passadeira da escada tem um buraco e não vá a menina cair... Depois calou-se e, passado um bocado, disse: … há outra coisa de que queria preveni-la; é que o outro sócio, o Valladas, é um pouco rude. Ele não é má pessoa, sabe, mas é da GNR. e não vá a menina chocar-se com qualquer coisa... Tudo isto foi dito com um ar circunspecto, mas cheio de amabilidade. Depois começaram, os olhares..., a corte... Passou-se uma coisa engraçada, logo nesse primeiro dia. Eu estava sentada a escrever à máquina. Alguém entrou no gabinete, não me lembro agora quem, e disse: … ó Fernando, não estava mesmo a apetecer dar um beijo naquele pescoço? … Eu não acho, respondeu ele secamente, maçado mesmo. Mais tarde disse-me que já eram ciúmes...
O Fernando era muito ciumento, mas não se zangava, não dizia nada; sofria. Não gostava que eu usasse decotes, nem falasse com rapazes. Um dia disse-me: … Hoje, pela primeira vez, tive ciúmes dos olhos do meu primo. … Porquê?, perguntei. … Porque eles viram-te e eu não te vi. Isto passou-se numa segunda-feira e eu por acaso no domingo tinha encontrado o primo dele na rua. Outra vez, mandou-me um bilhetinho, que dizia: … estavas a fazer olhos ternos ao Pantoja. Mas ele gostava de me fazer ciúmes a mim, para ver a minha reacção. Um dia, veio com uma história que se tinha passado com ele no eléctrico. Comentando a influência e a força do olhar de certas pessoas, contava ele que, ao fixar a cabeça loura de uma senhora que ia sentada à sua frente, ela se virara de repente para ele e o fixara insistentemente. Percebi logo qual era a intenção da história, e durante muito tempo falei-lhe na senhora loura, fingindo ter ciúmes. Ele gostava imenso e tinha um trabalhão a tentar convencer-me de que não havia senhora loura nenhuma.
O Fernando era muito supersticioso, especialmente com cães a ganir. Dizia que quando ia para casa à sua passagem, os cães ganiam, e que isso significava haver qualquer coisa nele que os fazia ganir.

A Primeira carta
Um dia faltou a luz no escritório. O Freitas não estava e o Osório, o grumete, tinha saído a fazer um recado. O Fernando foi buscar um candeeiro de petróleo, acendeu-o, e pô-lo em cima da minha secretária. Um pouco antes da hora de saída, atirou-me um bilhetinho para cima da secretária, que dizia: peço-lhe que fique. Eu fiquei, na expectativa. Nessa altura, já eu me tinha apercebido do interesse do Fernando por mim, e eu, confesso, também lhe achava uma certa graça...
Lembro-me que estava em pé, a vestir o casaco, quando ele entrou no meu gabinete. Sentou-se na minha cadeira, pousou o candeeiro que trazia na mão e, virado para mim, começou de repente a declarar-se, como Hamlet se declarou a Ofélia: … oh, querida Ofélia! Meço mal os meus versos; careço de arte para medir os meus suspiros; mas amo-te em extremo. Oh!, até do último extremo, acredita! Fiquei perturbadíssima, como é natural, e, sem saber o que havia de dizer, acabei de vestir o casaco e despedi-me precipitadamente». In Fernando Pessoa, Cartas de Amor, Organização de David Mourão Ferreira, preâmbulo de Maria da Graça Queiroz, Lisboa, Edições Ática, 1978.

Cortesia de EÁtica/JDACT