terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Espelhos. Cartas e Guias Casamento. Espiritualidade na Península Ibérica. 1450-1700. Maria de Lurdes C. Fernandes. «… a concordância não foi, muitas vezes, fácil e suscitou em variados momentos divergências significativas e mesmo polémicas pelos reformadores no século XVI (muito particularmente Lutero)»

Cortesia de wikipedia e jdact

Virgindade e casamento. Status religiosorum e status laicorum nos fins da Idade Média e primeira metade do século XVI
«(…) A coexistência, nos finais da Idade Média, e também na Península Ibérica, de tendências não tanto opostas, mas, sobretudo, diferenciadas, nomeadamente entre os mais altos representantes da Igreja, e que circularam em contextos sociais e literários diversos são o primeiro indício para a não aceitação sem discussão do epíteto de mal menor que frequentemente se diz ter sido atribuído ao casamento por clérigos e religiosos desse período. Muitas foram as vozes que, já durante a baixa Idade Média, se levantaram em defesa, num sentido, por vezes, de uma quase exaltação, quer dos bens do casamento, na linha do De Bono Conjugali de Santo Agostinho, ou do próprio sacramento do matrimónio com vista à reposição dos valores espirituais do mesmo, quer ainda dos seus valores morais, como a amizade, o amor conjugal, a educação dos filhos, o aprofundamento da paz, entre outros. Não se deverá esquecer, contudo, que a oposição virgindade/casamento, na qual estava implícita a dualidade básica entre vida espiritual e vida mundana, vida religiosa e vida social (independentemente das subdivisões de cada uma desta) era, por si só, geradora de concepções depreciativas, porque resultante de uma hierarquia espiritual em que a vida conjugal ocupava um dos lugares mais baixos. Perante esta dualidade básica, dificilmente contestável nos finais da Idade Média, as representações do casamento enquanto estado de vida espiritualmente concebido enfermava desse como que pecado original. Mas poder-se-á, igualmente, perguntar como podia, com que meios, a maioria dos casados, nos finais da Idade Média e ainda nos séculos seguintes, interiorizar e, mesmo, em alguns casos, aceder à concepção cristã e católica do casamento, nomeadamente nos seus conselhos sobre a castidade e a concupiscência carnal, a continência e o valor moral do casamento e, sobretudo, como e porquê deveriam exercer auto-controle.
Como poderiam compreender, por exemplo, a exaltação da castidade conjugal coexistindo com a obrigação, bem justificada, especialmente em textos canónicos e de teologia moral, do débito conjugal e com a afirmação do valor social e religioso da procriação? E isto, num período em que o grau de cristianização dificilmente conseguia uma interiorização eficaz, e muito menos massiva, da mensagem cristã, de que, aliás, os séculos XVI e XVII ainda se ressentiriam. Não se pode, facilmente, esperar uma sintonia, muito menos perfeita, neste como em outros períodos, entre clérigos e leigos, numa matéria em que uns e outros viam, quase sempre, diferentes realidades e diferentes funções. Não se pode, igualmente, encarar o problema desde o ponto de vista apenas de um dos níveis, espiritual, moral, social, económico..., em que o casamento se inseria. Também não se deve pretender que os autores desse período, como dos séculos XVI e XVII (fundamentalmente homens da Igreja que, doutrinariamente, discorriam sobre diversos aspectos da sociedade), ultrapassassem facilmente essa barreira, a ponto de poderem conceber uma equivalência espiritual desses dois estados. Por seu turno, os leigos também não dispunham de meios e muito menos de utensílios mentais que lhes permitissem negar essa hierarquia que fazia parte do seu universo mental, já que, neste período, como dizia Lucien Febvre, Les yeux de l'Église, ce sont les yeux de tous.
A clareza das palavras de S. Paulo, na 1ª Epístola aos Coríntios, exortando os solteiros e viúvos a permanecerem nos seus estados, palavras tão repetidamente glosadas por toda a Idade Média, não permitia facilmente outras interpretações quando se olhava comparativamente e genericamente estado religioso e estado matrimonial. Além disso, não será demais repeti-lo, é necessário atender ao facto de que muitas obras que se debruçaram sobre, ou mesmo as que apenas afloraram, o problema do casamento (de uma ou várias das suas componentes), defendendo-o, questionando-o ou preterindo-o, tinham objectivos, motivos e contextos específicos nos quais, em determinadas situações, pequenas diferenças ou matizes podiam alterar perspectivas de conjunto. Por vezes, assistiu-se mesmo à elaboração de obras que, manejando no essencial as mesmas fontes e autoridades, tinham intuitos e características bastante diversificadas.
Sendo o casamento, instituição, sacramento e estado, um ponto de encontro, por excelência, entre o profano e o religioso ou, mais concretamente, entre o social, o económico, o moral e, por vezes, o espiritual, natural é que não só as diferenças de acento sejam significativas como, talvez sobretudo, as polémicas e as correntes de opinião. Um dos aspectos mais discutidos, ainda nos finais da Idade Média, relacionava-se, precisamente, já o referimos, mas importa lembrá-lo, com a dimensão carnal do casamento, que resultava da legitimação, por este, enquanto sacramento, das relações sexuais que constituíam, por sua vez, a principal negação do princípio e valor da virgindade. Neste aspecto, especialmente delicado, a concordância não foi, muitas vezes, fácil e suscitou em variados momentos, como é sabido, divergências significativas e mesmo polémicas, nomeadamente pelos reformadores no século XVI (muito particularmente Lutero). Mas também neste aspecto a doutrina oficial da Igreja não lhe foi propriamente hostil, uma vez que o casamento cristão, porque sacramento, erauma forma de obstar à concupiscência carnal, como o tentou provar o De Bono Coniugali de Santo Agostinho, nomeadamente na afirmação de que Ad hoc enim nuptae sunt, ut illa concupiscentia redacta ad legitimum vinculum, non deformis et dissoluta fluitaret..., ou de que ...nuptiae tamen ab adulterio seu fornicatione defendunt. Neque enim illud propter nuptias admittitur, sed propter nuptias ignoscitur». In Maria de Lurdes Correia Fernandes, Espelhos, Cartas e Guias Casamento. Espiritualidade na Península Ibérica 1450-1700, Instituto de Cultura Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995, Porto, ISBN: 972-9350-17-5.

Cortesia de ICP/FLFP/JDACT