A França esperava uma
rainha. Adeus a Nápoles
«(…) Obrigada,
minha avó, pensava ela de olhos voltados para a janela onde Maria da Hungria desaparecera
instantes antes. Sem dúvida não voltarei a ver-vos. Obrigada por tudo o que fizestes
por mim. Aos vinte e dois anos sentia-me desolada por ainda não ter encontrado
marido. Já, não tinha esperança de vir a casar e preparava-me para entrar num convento.
Fostes vós que tivestes razão para me pedir paciência. E agora vou ser rainha de
um reino atravessado por quatro grandes rios e banhado por três mares. O meu primo
o rei de Inglaterra, a minha tia de Maiorca, o meu parente da Boémia, a minha
irmã delfina do Vienne, e mesmo o meu tio Roberto, que reina aqui e de quem até
hoje fui súbdita, tornar-se-ão meus vassalos pelas terras que têm em França ou pelos
seus laços com a coroa. Não será tudo isto demasiado pesado para mim? Sentia ao
mesmo tempo a exaltação da alegria, a angústia do desconhecido e a perturbação
de que é tomada a alma com as mudanças irrevogáveis do destino, mesmo quando ultrapassam
o que nos mostravam os nossos sonhos. O vosso povo mostra que vos ama, senhora,
disse um homem corpulento que apareceu ao seu lado. Mas estou certo de que em breve
o povo de França vos amará igualmente e de que bastará olhar-vos para vos
oferecer uma recepção semelhante a este adeus.
Ah! Nunca deixarei
de ter em vós um amigo, senhor de Bouville!, respondeu Clemência calorosamente.
Tinha necessidade de espalhar a felicidade à sua volta e de agradecer a todos os
que a rodeavam. O conde de Bouville, enviado do rei Luís X, e que conduzira as negociações,
regressara a Nápoles duas semanas antes para vir buscar a princesa e acompanhá-la
a França. E também vós, senhor Baglioni, sois meu amigo, acrescentou, voltando-se
para o jovem toscano que servia de secretário a Bouville e tomava conta dos dinheiros
da expedição, emprestados pelos banqueiros italianos. O jovem inclinou-se, para
agradecer o cumprimento. E na verdade nessa manhã todos se sentiam felizes. Hugo
de Bouville, a transpirar um pouco sob o calor de Junho e escondendo atrás das orelhas
as mechas de cabelo grisalho, sentia-se alegre e satisfeito por ter cumprido a sua
missão e de levar ao rei tão magnífica esposa.
Guccio Baglioni
sonhava com a bela Maria de Cressay, a sua noiva secreta, a quem levava uma arca
cheia de sedas e de adornos bordados. Não estava certo de ter agido bem pedindo
ao tio Tolomei que o deixasse dirigir a sucursal do banco em Neauphle-le-Vieux.
Deveria contentar-se com estabelecimento tão insignificante? Ora, é apenas um começo!
Depressa poderei mudar de posição, e passarei a maior parte do meu tempo em Paris.
Seguro da protecção da nova soberana, não via limites para a sua ascensão. Via já
Maria como dama de companhia da rainha e imaginava-se ele próprio, dali a
poucos meses, a ser nomeado para um cargo na casa real… Com o punho sobre a
adaga, queixo bem erguido, Guccio via Nápoles estendida à sua frente sob a
forte luz do Sol. Dez galeras escoltaram o navio até ao mar alto. Os napolitanos
viram afastar-se e depois diminuir de tamanho aquela fortaleza branca que singrava
sobre as águas.
A França esperava uma
rainha. A tempestade
Poucos dias
mais tarde, a San Giovanni já não passava de uma carcaça só com metade dos mastros,
a gemer e a fugir das rajadas, a rebolar entre vagas gigantescas, e que o capitão
mantinha com dificuldade no que imaginava ser a direcção da costa de França. Por
altura da Córsega, o navio vira-se envolvido por uma daquelas tempestades tão bruscas
como violentas que por vezes ocorrem no Mediterrâneo. Perdera seis âncoras a tentar
fundear contra o vento ao largo da costa da ilha de Elba, e só por pouco não fora
atirado contra os rochedos. E depois retomara a corrida, por entre verdadeiras muralhas
de água. Um dia, uma noite e ainda outro dia continuou aquela navegação pelos infernos.
Vários marinheiros foram feridos ao tentar arriar o que ainda restava do
velame. As vigias dos castelos tinham desabado com toda a sua carga de pedras
destinadas aos piratas. Foi necessário abrir caminho a golpes de machado para libertar
os cavaleiros napolitanos que tinham ficado presos pela queda do mastro grande.
Todas as arcas de vestidos e de jóias, todas as peças de ourivesaria da princesa
tinham sido varridas pelo mar. A enfermaria do cirurgião-barbeiro, no castelo de
proa, estava cheia de doentes e de estropiados. O capelão já não podia sequer celebrar
a sua missa seca, uma vez que tanto o cibório como o cálice, os livros e os paramentos
tinham sido levados por uma vaga». In Maurice Druon, Os Reis Malditos, Os
Venenos da Coroa, 1956, tradução de Helena Ramos, colecção Cavalo de Tróia,
Gótica, 2006, ISBN 972-792-165-5.
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Gótica/JDACT