«(…) Atenção!, gritou Narouz. Não
se mexa. A água estava espessa como cola e corpos prateados começaram a surgir saltando
na escuridão para recaírem no amálgama lamacento. Os círculos de luzes
encontraram-se, confundiram-se, e o cerco fechou-se; houve então um chapinhar
ininterrupto de formas obscuras que remergulhavam na água efervescente,
contorcendo-se, e escapando-se das redes agora reunidas e já transbordantes,
como sapatinhos de Natal, com os corpos nervosos dos peixes. O pânico começava
a apoderar-se deles e enrugavam a superfície da água com os seus saltos
precipitados, salpicando as lanternas balbuciantes e vindo cair finalmente dentro
dos batéis, colheita nervosa de escamas geladas e de caudas palpitantes. Os
seus sobressaltos de agonia eram tão excitantes como o bater de tambores.
Partiam risos de todos os lados enquanto as redes se apertavam. Mountolive
distinguia os árabes, com o grande manto branco apertado na cintura,
segurando-se com as mãos às proas negras, atirando lentamente para diante as
redes entrelaçadas. A luz iluminava-lhes as coxas morenas. A noite estava
prenhe da sua alegria bárbara.
E então produziu-se novo e
inesperado fenómeno, o céu, tal como as águas, começou a tornar-se espesso. As
trevas povoaram-se de vultos estranhos, pois os gritos e os ruídos tinham
despertado os habitantes das margens, pelicanos, flamingos, gralhas e maçaricos,
que se aproximavam em bandos desordenados, vindos dos canaviais para participar
no festim, lançando gritos agudos e descrevendo audaciosas figuras aéreas para
apanhar o peixe no voo. A atmosfera e a água fervilhavam de vida enquanto os
pescadores começavam a armazenar a sua presa no fundo dos batéis ou voltavam as
redes para despejar uma catadupa de corpos prateados no fundo do barco. Os timoneiros
depressa ficaram com os pés ocultos por uma multidão de corpos contorcendo-se
numa agonia desesperada. Havia de sobra para os homens e para as aves, e, ao
passo que os maiores pernaltas do lago abriam e fechavam as asas tímidas como
velhas sombrinhas coloridas, os maçaricos mergulhavam com a rapidez do raio,
excitados pela fome e pela carnagem, em voos suicidas, indo alguns quebrar o
pescoço nas tábuas dos barcos, indo outros enterrar o bico na carne morena de
um pescador, rasgando-lhe uma perna ou o rosto, na sua avidez terrificante. Os
salpicos da água, os gritos roucos, o bater dos bicos e das asas e o matraquear
frenético dos tamborins emprestavam à cena um inesquecível esplendor que
evocava no espírito de Mountolive antigos frescos faraónicos de luz e de
trevas.
Alguns homens lutavam contra as
aves, batendo o ar com bastões, de tal modo que no meio do montão de peixes
descobriam-se por vezes penas de todas as cores, de magníficos cambiantes, e
bicos quebrados de onde pingava o sangue sobre as escamas prateadas. Em menos
de uma hora os batéis ficaram cheios até à borda. Nesse momento Nessim passou junto
deles e gritou-lhes: temos de nos ir embora! Estendeu a mão apontando para uma
lanterna que formava na margem uma doce gruta de luz, no interior da qual se
distinguiam os flancos sedosos de um cavalo e o recorte denteado de palmeiras. A
minha mãe está à nossa espera, acrescentou Nessim, sorrindo. Debruçou-se e o
seu belo rosto apareceu aureolado por um jacto deluz que o envolveu. Era dotado
daquela beleza bizantina de que se encontram numerosos exemplos nos frescos de
Ravena, rosto em forma de amêndoa, olhos negros, feições puras. Mas Mountolive
via através do rosto de Nessim a face de Leila, sua mãe, que tanto se parecia
com ele.
Narouz!, gritou em voz rouca,
porque o irmão tinha saltado à água para prender uma rede. Narouz! Era difícil
fazer-se ouvir naquela confusão. Temos de nos ir embora. E os dois batéis viraram
de bordo e apontaram para o embarcadouro onde Leila os esperava pacientemente
com os cavalos, ouvindo o zumbido persistente dos mosquitos. Um fino crescente
erguera-se no céu. A voz de Leila atravessou afectuosamente as águas para
censurá-los e Narouz suspirou deliciado. Apanhámos milhões de peixes, gritou
Nessim. Ela estava à beira do embarcadouro, silhueta apenas mais sombria que a
noite, e as suas mãos encontraram-se por um instinto perfeito e inconsciente. O
coração de Mountolive começou a palpitar desordenadamente quando ela o ajudou a
saltar. Mas assim que os dois irmãos se encontraram em terra, Narouz bradou: vamos
ver quem chega primeiro a casa, Nessim! Precipitando-se para os cavalos
partiram a galope, às gargalhadas, e Leila soltou um grito de prudência: tenham
cuidado! Mas já eles iam longe do molhe, cujas tábuas elásticas deixaram a
vibrar». In Lawrence Durrell, O Quarteto de Alexandria, Mountolive, 1958,
Publicações dom Quixote, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, 2012, ISBN
978-972-205-110-1.
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