quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Os Mistérios de Maria Antónia (V). Valdemar Cruz. «… uma mãe muito divertida e com uma tremenda paixão pelo pai. Joana, eterna inconformada com aquele desaparecimento, deixa no ar a interrogação contida no que diz ser o grande mistério: porque teve tanto sofrimento se tinha um homem que tanto a amava?»

Cortesia de Expresso e jdact

Com a devida vénia a Valdemar Cruz e ao Semanário Expresso

«Desenhava como ninguém e morreu aos 32 anos nos braços de Álvaro Siza. O arquiteto assumiu uma viuvez eterna, com as causas da morte a alimentarem especulações. O Expresso conta pela primeira vez a história da mulher cuja obra chega agora à Gulbenkian». In texto de Valdemar Cruz

«(…) A violência expressa na obra, aquela quase raiva expressionista, só com muita dificuldade poderia ter conquistado o reconhecimento merecido numa arte portuguesa pacificada à força por anos de política do espírito, defende Pinto de Almeida. Em sua opinião, há uma dimensão erótica, pulsional, de inquirição das formas que o corpo toma, que se constituem como uma grande singularidade no contexto da época. Siza reforça a ideia da exploração do corpo. Nota a presença de muitas mulheres. São desenhos intemporais. Normalmente com roupagem cuja época se desconhece. Por trás da roupagem sentem-se perfeitamente os ossos, o esqueleto, o movimento muito bem conseguido. Ao colocar de lado, por desinteressantes, níveis de expressão de sofrimento puramente neuróticos, o crítico de arte chama a atenção para os artistas, como Maria Antónia, que mercê de um conhecimento da dor, fazem ascender isso a um plano universal. Inscrevem a expressão do sofrimento em algo que é maior que eles. Fernando Pessoa, Mário Eloy, Domingos Alvarez são outros exemplos paradigmáticos. Não por acaso, António Carlos, irmão de Álvaro e uma das pessoas que melhor a terá conhecido, olha para os desenhos e quadros dispersos pelo seu andar em Leça da Palmeira e não deixa de continuar a impressionar-se com todo aquele ambiente barroco, sinistro, misterioso. Olha de novo e desabafa: Ela não tinha vivência para fazer a obra que fez. Maria Antónia não chega a concluir o curso de pintura. Faltava-lhe, porventura, a capacidade para controlar o quotidiano em que se deixava enredar. Luísa Marinho fala de como lhe era complexo gerir muitas coisas ao mesmo tempo, ainda por cima com dois filhos. Tinha dificuldade em lidar com tanta responsabilidade e era-lhe tudo muito pesado. Isso deprimia-a. Cecília Cavaca chama à colação um outro dado essencial. A circunstância de ser mulher, nos anos 60, em Portugal, não era simples, tanto mais que, sublinha, havia a expectativa de que as mulheres fossem donas de casa brilhantes, esposas dedicadas e excelsas mães de família. Ao casar, Álvaro Siza é prevenido pelos familiares de Totó sobre a existência de um leve problema do coração, de nascença, mas recuperado. Na verdade, durante grande parte da vida passa bem. Depois, prossegue o arquiteto, começa a ter problemas de sono, inicia um processo de medicação e vai perdendo a alegria. Laura Soutinho lembra-se de a ter grávida de Joana no seu casamento com Alcino. Acontece a depressão pós-parto e nunca mais se liberta. Torna-se vítima do estado de evolução da medicina à época. Na atualidade há outras abordagens, outro tipo de tratamentos passíveis de com relativa facilidade resolver um caso transformado em drama, agudizado pelo alimentar da dúvida sobre se Totó teria procurado um fim provocado por si mesma. O filho, Alvarinho, não hesita em assegurar que tiveram uma infância feliz, mas ao crescer sofre o impacto da especulação criada. Decide tirar todas as dúvidas, esclarecidas com o acesso à certidão de óbito, que mais tarde nos é mostrada pela Joana. Regista como causa de morte uma embolia pulmonar. É certo que tomava muita medicação psiquiátrica, mas a morte decorre dos problemas cardíacos identificados desde a infância, enfatiza Luísa Marinho. Os desenhos exprimem um universo psicológico e estético que faz de Maria Antónia uma artista muito próxima de uma raiz expressionista Carlos Morais vê-a pela última vez meses antes do fim. Numa deslocação ao Porto almoçam juntos. Maria Antónia não revela grande vivacidade. Ao despedir-se, beija-o na face e desabafa: Já viste? O Álvaro vai ser um grande arquiteto e vai ficar viúvo. Escrito assume uma carga dramática inexistente naquele instante. Isto porque, refere Carlos, embora sentisse que algo se aproximava, ao mesmo tempo diz isto com humor. Naquele dia 11 de janeiro de 1973, pouco após as 6 horas da manhã, toca o telefone em casa dos Soutinho. Do outro lado do fio ouve-se a voz de Álvaro. Parece sibilar a desgraça saída do fundo dos tempos. Ao seu lado, na cama, está Maria Antónia. Morta. Regressar àquele instante é-lhe ainda doloroso. São, por isso, parcas as palavras. Foi de madrugada, ao meu lado. Estava a dormir e por acaso acordei ouvindo ainda o último suspiro. Foi duro. O espanto e a comoção são gerais. Cecília e Rogério Cavaca lembram-se de a partir de novembro a verem com febres altas. No Natal aparece muito caída e pouco antes são enviadas umas análises para Inglaterra. Os resultados chegam apenas dias após o falecimento e traçam um quadro muito negro. Na noite da morte o casal Cavaca prolonga o serão em casa dos Siza até à uma da madrugada. Tudo normal. Na manhã seguinte, bem cedo, desaba-lhes o brutal impacto da notícia. Alvarinho acompanha o drama. Alguém o leva para casa do arquiteto Rolando Torgo. Depois vai para o tio António Carlos. Joana só mais tarde tem noção de que algo se passa. Está no Colégio Nossa Senhora da Paz, chamam-na, e aparece-lhe a tia freira, irmã do pai. Diz-lhe: a mãe vai para o céu. Fica em estado de choque. Deixam-na numa sala, sozinha, à espera que a levem. Naquela noite dorme em casa da tia Irene Siza Vieira. A partir dali há uma outra e imensa história de amizades, de solidariedades, de partilhas. Como dizem Joana e Alvarinho, muita gente se ocupou e preocupou com deles. Desde logo o pai, os avós, os tios, mas também Alcino e Laura Soutinho, bem como Cecília e Rogério Cavaca, ou Luísa Brandão e Alves Costa e tantos outros, sem esquecer Elisa, a empregada de tantos anos. Joana emociona-se ao falar da mãe. Tem uma memória forte, recolhida bem longe, de ver os pais a namorar, a dançar na sala. Alvarinho recupera a imagem de uma mãe muito divertida e com uma tremenda paixão pelo pai. Joana, eterna inconformada com aquele desaparecimento, deixa no ar a interrogação contida no que diz ser o grande mistério: Porque teve tanto sofrimento se tinha um homem que tanto a amava? In Valdemar Cruz, Semanário Expresso, Edição 2245, 7 de Novembro de 2015, Revista E, código para acesso TLKQU, +E, página 24 a 32.

Cortesia do Expresso/JDACT