terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Tudo é Mercadoria. António Borges Coelho. «Os feitos não se fizeram só para ficar na história para brilho e fama que cobriam de rendas alguns descendentes dos heróis. Os feitos fizeram-se para a conquista do comércio…»

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«O Tempo prende-nos em patamares irreversíveis. E quando o corpo gela, cobre-nos com uma mortalha de terra e de silêncio. A História cumpre depois a tarefa impossível de quebrar o bloco de gelo e animar de novo o espaço, as ideias e os corpos. À História nada é alheio. Prende na malha da relação o particular e o singular. Ao demorar-me na vida e na obra de João Barros, a medo ouso. Anima-me, porém, a ideia clássica e bem renascentista de que o homem é um mundo pequeno ou a ideia de Leibniz de que cada mónada criada representa todo o Universo. Quem muito procura pelos indivíduos quebra o nervo da História, escreveu João Barros. Mas não pertenceu ele ao círculo dos homens a quem coube a direcção executiva dos negócios de Além-Mar, dependentes da direcção política, da pressão do mercado e dos feitos de armas de que ele traçou um mural com trompas de epopeia?
Como feitor da Casa da Índia, dedicou os dias a tarefas de direcção executiva dos negócios ultramarinos em ligação com o vedor da fazenda, o seu compadre conde da Castanheira, e com o próprio rei. Parte das noites gastou-as a descrever as regiões e países e principalmente a acção dos navios, das armas e do comércio portugueses. O estudo da vida e da obra de João Barros permite, pois, não só uma aproximação favorável ao conhecimento dos feitos como ao das ideias que os iluminavam. O historiador ensaiou os primeiros passos, navegava Vasco Gama para a Índia. E deitaram-no no túmulo da Ermida de Santo António, na quinta da Ribeira de Alitém, a menos de oito anos da batalha de Alcácer Quibir. Estendeu a vida por três quartos de século a que associamos, na Europa, as transformações operadas pelos Descobrimentos e Conquistas, o Renascimento das artes, das letras e das ciências, os movimentos sociais, ideológicos e políticos da Reforma e da Contra-Reforma. Além de alto funcionário, historiador e geógrafo, João Barros foi pedagogo, obreiro da divulgação da língua portuguesa nos vários continentes, autor de opúsculos de filosofia moral e da jóia literária e filosófica que intitulou Ropica Pnefma.
Leigo, não temeu usurpar a função de levita. Alto funcionário económico e sem qualquer nomeação oficial para o cargo de cronista, ousou escrever os quatro volumes da Ásia. E integrou os primeiros pelotões dos portugueses e europeus que recorreram aos caracteres móveis da imprensa para virem ao encontro e alargarem o número dos seus leitores. Temeu perseguições pela Ropica e queixou-se da ingratidão dos portugueses para com a Ásia. No entanto, Luís Vicente Vives apreciou a Ropica e dedicou ao seu autor as Exercitationes animi in Deum, publicadas em Antuérpia em 1535. As Décadas I e II foram traduzidas para língua italiana por Afonso Ulloa e publicadas em Veneza em 1565-1572. Giovani Battista Ramusio incluiu alguns capítulos das Décadas nas suas Della Navigationi et Viaggi. O xá da Pérsia, segundo informações de seu filho Jerónimo, teria a intenção de mandar transladar as Décadas. Diz-se ainda que o papa Paulo IV mandou colocar o seu retrato no Vaticano ao lado do de Ptolomeu e que o mesmo teria feito Veneza.
Manuel Severim Faria traçou-lhe o primeiro esboço biográfico. No nosso século António Baião procedeu a um levantamento documental quase exaustivo sobre a sua vida. I. S. Révah publicou o texto inédito do Diálogo Evangélico, reeditou a Ropica e escreveu sobre Barros alguns textos fundamentais. António José Saraiva, Maria Leonor Carvalhão Buescu, Banha Andrade, Joaquim Veríssimo Serrão e Jorge Borges Macedo dedicaram-lhe páginas esclarecedoras. C. R. Boxer destinou-lhe em 1981 um precioso e detalhado estudo, ainda não traduzido em língua portuguesa». In António Borges Coelho, Tudo é Mercadoria, Editorial Caminho, Lisboa, 1992, ISBN 972-210-759-3.

Cortesia de Caminho/JDACT