segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «Gotas de suor colavam-se à testa. As mãos tremiam. Deixou cair a cabeça na mesa e quedou assim até ganhar algum controlo sobre o corpo. Aos poucos acalmou…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) Entrou no gabinete papal depois do jantar ligeiro. Cherne com feijão verde, cenoura raspada, tudo regado com um pouco de azeite Riserva D’Oro. A última vez que ali estivera era um mero cardeal com um perdão da má palavra, mas o que é um príncipe ao lado de um imperador? A sensação, agora, era completamente diferente. Passou a mão pela portentosa mesa. Ali assinaria os futuros decretos da sua igreja. Via-a magnificente, condizente com as vestes que envergava, assente em pilares muito sólidos, escudada nas suas mãos fortes e sábias. As rédeas eram dele. Sentou-se na confortável cadeira e saboreou o momento. Lembrou Wojtyla e as décadas em que, ele próprio, o observava sentar-se, pesadamente, naquela mesma cadeira, e decidir dos destinos da Igreja. Ali não era possível esquecer que fora escolhido para o ofício de uma vida até à morte. Sodano e Somalo observavam-no. Assim tomava posse um novo Papa.
Nesse momento entrou no gabinete um outro elemento. Trajava batina preta e ajoelhou-se, com dificuldade, a saudar Bento com um beijo na mão que ainda não tinha anel. Já muitos haviam beijado a mão dele neste dia, mas nenhum com esta franqueza. Era velho e até a respirar lhe custava. Não me recordo de o ter visto alguma vez, insinuou Ratzinger, sorrindo. Nada o indisporia neste dia. Peço desculpa pela intromissão, Santo Padre. O meu nome é Ambrosiano. Fui confessor do nosso amado Papa João Paulo depois da morte do padre Michalski, explicou-se arfante. Mandam os cânones que Sua Santidade se confesse esta noite, por ser a primeira. Para que inicie um pontificado livre de pecados. Desfez-se em desculpas. Não quero dizer que os tenha, Santidade, por favor não me leve a mal. Depois poderá escolher o confessor que lhe aprouver. A Companhia de Jesus e as regras rígidas. O cardeal Dezza também confessou o papa Wojtyla?, perguntou Ratzinger. Só nos primeiros anos, Santo Padre. Mas confessou o papa Montini durante todo o pontificado e o papa Luciani. Depois, o papa Wojtyla nomeou-o superior-geral da Companhia, se bem se lembra.
Claro, claro. Um grande servo da Igreja, disse contemplando o passado. E agora o padre Ambrosiano quer-me confessar. São os cânones, Santo Padre, repetiu o clérigo. E os cânones são sempre para respeitar. E comigo sê-lo-ão sempre. Cuidarei para que isso aconteça, afirmou Ratzinger, brandindo o dedo como se estivesse a proferir um discurso. O padre aproveitou para retirar um colar que trazia ao pescoço. Encontrava-se presa nele uma chave que utilizou para destrancar uma das gavetas da secretária. Dentro havia uma capa de couro com fechadura e um envelope com as armas pontifícias do antecessor. Retirou tudo da gaveta e colocou em cima da mesa, em frente a Bento. O papa João Paulo deu-me instruções especificas para que Sua Santidade leia, com atenção, o conteúdo deste dossiê ainda hoje. Todas as informações estão contidas neste envelope que deixou, especificamente, para si, explicou, entregando-lhe o envelope lacrado. Mais ninguém pode ler.
Bento fitou o padre e os cardeais e o envelope. Respeite-se a sua vontade, proferiu por fim. Olhou os dois homens como a pedir que se retirassem e estes cumpriram o desejo sem delongas. Vontade de papa era ordem. Deixá-lo-ei ler à vontade, Santo Padre, disse o padre jesuíta recuando. Quando estiver pronto é só chamar. Bento fechou os olhos e inclinou-se para trás. Milhares de pensamentos afluíram-lhe à mente. Iria compartir um segredo partilhado apenas por papas. Que extraordinária forma de começar o seu mandato. Alguns minutos depois quebrou o lacre do envelope que o polaco deixara. O papel cheirava a mofo.

Prezado Eleito
Congratulo-me com a tua eleição. A história prossegue o seu caminho glorioso, dois mil anos depois. Acabas de ocupar o cargo mais exigente do planeta. Prepara-te, pois será um caminho agreste e ingrato e, o pior de tudo, começa já. Dentro da capa que te foi apresentada encontrarás informações lidas por muito poucos. Informações cruciais acerca da nossa Igreja. Não deves... não podes deixar de as ler e instruir os teus secretários a apresentá-las ao teu sucessor na noite da próxima eleição. O ritual começou com Leão X e conheceu novos desenvolvimentos com Pio IX e João XXIII. Jamais deixou de ser cumprido, NEM PODE DEIXAR DE O SER. Infelizmente, em breve compreenderás a razão. Deixo-te nas boas graças do Bom Deus. Que te ilumine e te dê forças para carregares o enorme fardo que subsistirá no final destas páginas. Da tua força depende o futuro da nossa Igreja. João Paulo II P.P. 29 de Outubro de 1978.

Uma curiosidade mórbida conquistou Bento após a leitura da missiva que Lolek escrevera há quase vinte e sete anos. Que informações tão devastadoras estariam dentro do dossiê? O envelope guardava a pequena chave dourada que o abria. Tratou de o destrancar sem demoras e dedicou-se, afincadamente, à leitura das cerca de 100 páginas. Não havia imaginado uma primeira noite assim, a seguir instruções do antecessor. E cedo se notou, pelo esgar dos olhos mortiços, que não estava preparado para o que lia. Algumas passagens foram relidas para se certificar de que as lera correctamente, noutras acelerou o mais possível como que a fugir de algo inoportuno ou inconveniente. Terminou a leitura depois da meia-noite. Estafado, voltou a trancar o dossiê com a chave e a guardá-lo na gaveta. Gotas de suor colavam-se à testa. As mãos tremiam. Deixou cair a cabeça na mesa e quedou assim até ganhar algum controlo sobre o corpo. Aos poucos acalmou. Quando se levantou, a custo, parecia mais velho e acabado. Deus nos valha, desabafou, fazendo o sinal da cruz.
Nesse momento, o padre Ambrosiano reentrou no gabinete papal. Parecia-lhe diferente. Uma dor que lhe vergastava a alma, a mesma que o castigava a ele. Um silêncio contido de algo demasiado grande para calar. O jesuíta sabia. Desta vez o jesuíta não se abaixou para beijar a mão do papa. Ratzinger acercou-se, humildemente, dele e deixou-se cair aos seus pés. Soltou um lamento entrecortado pelas lágrimas que caíam em torrente. Perdoe-me, padre. Eu pequei, implorou o papa, fechando os olhos. Ambrosiano passou a mão bondosa pelo cabelo do papa com uma carícia. Eu sei, meu filho... Eu sei». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT