domingo, 6 de dezembro de 2015

A Relíquia. Eça de Queirós. «… onde a realidade sempre vive, ora embaraçada e tropeçando nas pesadas roupagens da História, ora mais livre e saltando sob a caraça vistosa da Farsa. […] veio passar o São João a Évora, a casa do cónego Pita, onde o pai muitas vezes à noite costumava ir tocar viola»

jdact e wikipedia

Sobre a nudez forte da verdade. O manto diáfano da fantasia
«(…) Há, porém, um ponto de Jerusalém Passeada que não posso deixar sem enérgica contestação. E quando o doutíssimo Topsius alude a dous embrulhos de papel, que me acompanharam e me ocuparam, na minha peregrinação, desde as vielas de Alexandria até às quebradas do Carmelo. Naquela forma rotunda que caracteriza a sua eloquência universitária, o Doutor Topsius diz: o ilustre fidalgo lusitano transportava ali restos dos seus antepassados, recolhidos por ele, antes de deixar o solo sacro da pátria, no seu velho solar torreado!... Maneira de dizer singularmente falaz e censurável! Porque faz supor, a Alemanha erudita, que eu viajava pelas terras do Evangelho, trazendo embrulhados num papel pardo os ossos dos meus avós! Nenhuma outra imputação me poderia tanto desaprazer e desconvir. Não por me denunciar à Igreja, como um profanador leviano de sepulturas domésticas; menos me pesam a mim, comendador e proprietário, as fulminações da Igreja, que as folhas secas que às vezes caem sobre o meu guarda-sol de cima de um ramo morto; nem realmente a Igreja, depois de ter embolsado os seus emolumentos por enterrar um molho de ossos, se importa que eles para sempre jazam resguardados sob a rígida paz de um mármore eterno, ou que andem chocalhados nas dobras moles de um papel pardo. Mas a afirmação de Topsius desacredita-me perante a burguesia liberal; e só da burguesia liberal, onipresente e onipotente, se alcançam, nestes tempos de semitismo e de capitalismo, as cousas boas da vida, desde os empregos nos bancos até às comendas da Conceição. Eu tenho filhos, tenho ambições. Ora, a burguesia liberal aprecia, recolhe, assimila com alacridade um cavalheiro ornado de avoengos e solares; é o vinho precioso e velho que vai apurar o vinho novo e cru; mas com razão detesta o bacharel, filho de algo, que passeie por diante dela, enfunado e teso, com as mãos carregadas de ossos de antepassados, como um sarcasmo mudo aos antepassados e aos ossos que a ela lhe faltam. Por isso, intimo o meu douto Topsius (que, com os seus penetrantes óculos, viu formar os meus embrulhos, já na terra do Egipto, já na terra de Canaã), a que na edição segunda de Jerusalém Passeada, sacudindo púdicos escrúpulos de académico e estreitos desdéns de filósofo, divulgue à Alemanha científica e à Alemanha sentimental qual era o recheio que continham esses papéis pardos, tão francamente como eu o revelo aos meus concidadãos nestas páginas de repouso e de férias, onde a realidade sempre vive, ora embaraçada e tropeçando nas pesadas roupagens da História, ora mais livre e saltando sob a caraça vistosa da Farsa.
O meu avô foi o padre Rufino Conceição, licenciado em teologia, autor de uma devota Vida de Santa Filomena, e prior da Amendoeirinha. Meu pai, afilhado de Nossa Senhora da Assunção, chamava-se Rufino da Assunção Raposo, e vivia em Évora com minha avó, Filomena Raposo, por alcunha a Repolhuda, doceira na Rua do Lagar dos Dízimos. o pai tinha um emprego no correio, e escrevia por gosto no Farol do Alentejo. Em 1853, um eclesiástico lustre, Gaspar Lorena, bispo de Corazim (que é em Galileia), , veio passar o São João a Évora, a casa do cónego Pita, onde o pai muitas vezes à noite costumava ir tocar viola. Por cortesia com os dous sacerdotes o pai publicou no Farol uma crónica laboriosamente respigada no Pecúlio de Pregadores, felicitando Évora pela dita de abrigar em seus muros o insigne prelado D. Gaspar, lume fulgente da Igreja, e preclaríssima torre de santidade. O bispo de Corazim recortou este pedaço do Farol, para o meter entre as folhas do seu breviário; e tudo no pai lhe começou a agradar, até o asseio da sua roupa branca, até a graça chorosa com que ele cantava, acompanhando-se na viola. Mas quando soube que este Rufino da Assunção, tão moreno e simpático, era o afilhado carnal do seu velho Rufino da Conceição, camarada de estudos no bom seminário de São José e nas veredas teológicas da Universidade, a sua afeição pelo pai tomou-se extremosa. Antes de partir de Évora, deu-lhe um relógio de prata; e, por influência dele, o pai, depois de arrastar alguns meses a sua madraçaria pela alfândega do Porto, como aspirante, foi nomeado, escandalosamente, director da alfândega de Viana». In Eça de Queirós, A Relíquia, 1887, Typographia de A. J. da Silva Teixeira, Porto, 1887, Editora Livros do Brasil, Obras de Eça de Queirós, 2011, ISBN 978-989-711-008-5.

Cortesia de ELBrasil/JDACT