Com
a devida vénia a Valdemar Cruz e ao Semanário Expresso
«Desenhava como ninguém e morreu aos 32 anos
nos braços de Álvaro Siza. O arquiteto assumiu uma viuvez eterna, com as causas
da morte a alimentarem especulações. O Expresso conta pela primeira vez a
história da mulher cuja obra chega agora à Gulbenkian». In texto
de Valdemar Cruz
«(…)
Seria um espírito indomável. De alguma forma assim a recorda Alves Costa,
apesar de vir de uma família muito castradora e conservadora. Luísa, a
irmã, discorda. Era apenas uma questão de proteção, garante. Ainda
assim, Totó toma conta do seu destino. Se a prendiam em casa, fugia,
assegura o arquiteto. António Carlos, 78 anos, irmão de Siza, quatro anos mais
novo, conhecia-a desde a frequência do liceu, e fala também de uma Maria Antónia a reagir contra o
espírito burguês das grandes famílias, de que era originária. Assume-se convencido
que essa foi uma das causas dos seus problemas, até pelas muitas
inquietações religiosas que a atormentavam, reconhecidas pela irmã quando admite
a existência desse desassossego desde a adolescência. António Carlos vai
mais longe e garante que a cunhada tinha o terror de morrer em pecado. O
peso da educação religiosa era uma coisa tenebrosa naquele tempo, sublinha.
Luísa Brandão relembra também uma amiga dominada pelo medo religioso e
frequentadora assídua das missas dominicais. Ao evocar o início do namoro, nas
Belas Artes, e o posterior casamento, Álvaro admite ter sido cativado pela
beleza, mas também pelo temperamento daquele espírito radicalmente
livre. Introvertido, o jovem arquiteto não era de festas. Maria Antónia transforma-o por completo.
Siza passa a ter uma vida que não tinha antes de maneira nenhuma. Havia
festas e dançava-se. Tudo o contrário do que era a minha personalidade.
Muito viva, extrovertida, com muito humor, Maria
Antónia, recorda, se estava nos seus dias, entrava numa sala e enchia a
sala, enquanto eu, entrando, não enchia coisa nenhuma. Olha para trás e
reconhece ter-se adaptado muito bem àquela vida. Considerava-se um
bicho do buraco e, constata, nas relações que depois perduraram, algumas
vinham de amizades dela. Começam por viver juntos, em 1961, na agora Rua
Arquiteto Marques da Silva, na zona do Bom Sucesso. Pagam 750 escudos de renda
mensal e cinco anos volvidos mudam-se para a zona de Francos, ainda assim nas
imediações da Boavista. Alvarinho já nascera, mas o ambiente era
tristíssimo. Não havia nada à volta e tudo era longe. Maria Antónia sente-se muito isolada e não aguentam lá mais de três
meses. O apelo à mudança é potenciado pela circunstância de vários amigos,
arquitetos e pintores, terem ido viver para os novos e excelentes prédios do
chamado Lima 5, da autoria de José Carlos Loureiro e Pádua Ramos,
situados entre as ruas da Alegria e da Constituição. Embora o ponto de partida
tenha sido marcado por enormes dificuldades, Álvaro Siza acaba por ficar lá
mais de 40 anos, até por ter o escritório na Rua da Alegria. A renda, demasiado
elevada (1100 escudos mensais) para os rendimentos da época, atormentava-o por
permanecer a dúvida sobre como aguentariam aquele esforço financeiro. O que de
início parecia uma decisão de grande risco, transforma-se com o tempo numa
afortunada escolha. Ali lhe morre a mulher, é certo. Mas ali são criados os filhos.
Ali recebe o apoio permanente e solidário dos amigos. Laura Soutinho, mulher do
recentemente falecido Alcino Soutinho, sempre na primeira linha daquele
suporte, também lá vivia e realça o papel daquela espécie de ilha dos
arquitetos como uma comunidade crucial para Totó enquanto lá viveu e
decisiva, depois, no acompanhamento solidário de uma família destroçada. É um
grupo muito unido, embora não fechado, e com um enorme desejo de viagem. Uma
das mais marcantes e hoje mítica tem como destino Marrocos, ao ponto de 44 anos
depois, em dezembro de 2011, ter sido lançado no Palacete Pinto Leite, no
Porto, a abarrotar de gente, o livro Marrocos 1967, assinado por
Alexandre Alves Costa e Álvaro Siza, e editado pela Circo de Ideias. Maria Antónia já fora a Paris de
comboio, aos 17 anos, com a irmã. Antes viajara apenas até Santiago de
Compostela, na companhia dos pais. Nesse dia, sem saber do futuro, cruza-se,
sem estabelecer contacto, com o homem com quem virá a partilhar a parte
decisiva da sua breve existência. Álvaro coincidira naquele dia em Santiago,
também acompanhado dos pais. Todavia, é a viagem a Marrocos a tornar-se
marcante para todos quantos nela participam. São mais de 20 dias a viajar de
automóvel tornados lendários pelas peripécias vividas. Luísa Brandão vai
grávida e Totó apresenta já algumas dificuldades em dormir. Distribuídos por um
Renault 4L e por um Fiat 850, partem sete jovens à procura do diferente proporcionado
pelo outro. Siza leva o pior carro da sua vida, um Fiat 850, ao ponto de
já em Marrocos, ter pensado desistir. Nele seguiam a mulher e o também
arquiteto José Grade. O Renault levava Alves Costa e Luísa, além de Sérgio
Fernandez e uma jovem sueca. Não lhes interessava apenas a arquitetura das
cidades imperiais. Queriam o encontro com as gentes e as culturas. Os passeios
à época, eram curtos. Ficavam-se quase sempre por Portugal e Espanha. Não havia
dinheiro para mais. Com a escola, Siza acaba por ir à Finlândia em 1968. Totó
fica no Porto, entre outras razões, sugere a arquiteta Cecília Cavaca, por ter
medo de viajar de avião. Lembra uma anterior incursão em Itália, durante um mês
e fala dos grupos grandes que se constituíam para estes percursos, com, além
deles próprios e de Siza, Fernando Távora, os Soutinho, Sérgio Fernandez,
Rolando Torgal, Alves Costa e outros. Rogério e Cecília Cavaca, mais novos,
integram o grupo apenas a partir de 1965. Quando a conhecem, Totó acabara de
sair de um tratamento da neurose pós-parto. Na verdade nunca terá acabado,
diz Cecília. Segundo conta, tomava estimulantes para estar bem disposta e
outros comprimidos para dormir, com alguns medicamentos a virem de
Inglaterra. Há demasiados transtornos a abatê-la. Mais de uma vez impõe-se a
necessidade de ser internada. Carlos Morais, porventura a pessoa com quem mais
Totó se terá correspondido, até por viver em Lisboa, sentia-a demasiado
condicionada pelo facto de se ver obrigada a tomar medicamentos em excesso.
Sucessivamente foi ficando muito fora do circuito, fora da ação. Tinha
períodos de letargia. Quando regressava, quando o humor se lhe tornava um
estado natural, era outra. A diferença de atitude fica patente na muita
correspondência travada entre ambos. Fala de cinema, dos filmes da vida, da
paixão por Luchino Visconti. Numa das cartas revela um entusiasmo desmesurado
por um disco acabado de comprar. É o famoso Time Out, de Dave Brubeck. É
bom demais. Leva-me às nuvens, escreve. Numa outra correspondência anuncia
a Carlos, ele próprio um grande cinéfilo, ter visto o segundo melhor filme da
sua vida; opinião, esclarece, partilhada por Álvaro. No pedestal está Cidadão
Kane, de Orson Welles. Segue-se Salvatore Giuliano, um filme sobre a
Mafia siciliana realizado em 1962 por Francesco Rosi. Nunca vi tão bom,
exclama. Logo de seguida, um comentário feito de uma deliciosa ironia: Depois
deste filme só tive uma conclusão a tirar: O Salazar não pode ser doutra coisa
senão da Mafia. Se não é, porque é que ainda não lhe atiraram com uma bomba?» In Valdemar
Cruz, Semanário Expresso, Edição 2245, 7 de Novembro de 2015, Revista E, código
para acesso TLKQU, +E, página 24 a 32.
Cortesia
do Expresso/JDACT