quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

O Nascimento do Mundo Moderno. Stephen Greenblatt. «Um gesto impertinente, uma recusa de prestar reverência, ou se ajoelhar, ou descobrir a cabeça diante da pessoa certa, podia acarretar um nariz rasgado ou um pescoço partido…»

Cortesia de wikipedia

O Caçador de Livros
«No inverno de 1417, Poggio Bracciolini ia a cavalo pelos morros e os vales arborizados do sul da Alemanha a caminho do seu distante destino, um mosteiro que segundo se dizia tinha um depósito de velhos manuscritos. Como deve ter ficado imediatamente claro para os aldeões que o viam das portas de seus casebres, o homem era estrangeiro. Pequeno e barbeado, provavelmente estava vestido de forma modesta com uma túnica e uma capa bem-feitas, mas simples. O fato de não ser do campo estava claro, e no entanto ele não se parecia com nenhum dos moradores da cidade e da corte que os nativos dali estariam acostumados a ver de passagem de vez em quando. Desarmado e sem a protecção de uma armadura barulhenta, certamente não era um cavaleiro teutónico, um único golpe firme com o bastão de osso de um campónio qualquer teria dado cabo dele com facilidade. Embora não parecesse ser pobre, não tinha nenhuma das marcas familiares de riqueza e status: não era da corte, com roupas lindas e cabelos perfumados arrumados em longos cachos, e também não era um nobre caçando com cães ou águias. E, como ficava claro pelas roupas e pelo corte do cabelo, não era padre nem monge.
O sul da Alemanha na época prosperava. A catastrófica Guerra dos Trinta Anos que assolaria a Alemanha rural e abalaria cidades inteiras da região ainda estava distante, assim como os horrores de nosso próprio tempo, que destruíram muito do que tinha sobrevivido daquele período. Além de cavaleiros, cortesãos e nobres, outros h mens de peso cruzavam as estradas sulcadas e compactadas. Ravensburg, perto de Constança, estava envolvida no comércio de tecidos e recentemente havia começado a produzir papel. Ulm, na margem esquerda do Danúbio, era um vigoroso centro de manufactura e comércio, assim como Heidenheim, Aalen, a linda Rothenburg ob der Tauber e a ainda mais linda Würzburg. Burgueses, mercadores de lã, couro e tecidos, vinhateiros e cervejeiros, artesãos e seus aprendizes, assim como diplomatas, banqueiros e cobradores de impostos, todos eles eram visões conhecidas. Ainda assim, Poggio não se encaixava. Havia também figuras menos prósperas, ajornalados, funileiros, amoladores de facas e outros cujos ofícios os mantinham na estrada; peregrinos a caminho de santuários, onde podiam rezar diante de uma gota de sangue sagrado ou um fragmento do osso de um santo; jograis, adivinhos, mascates, acrobatas e saltimbancos que viajavam entre as cidades; fugitivos, vagabundos e ladrões de galinhas. E também os judeus, com os seus chapéus cónicos e os distintivos amarelos que as autoridades cristãs os obrigavam a usar, para que pudessem ser facilmente identificados como alvos de desprezo e de ódio. Poggio certamente não era nada disso.
Para aqueles que o viam passar, ele na verdade deve ter sido uma figura desorientadora. A maioria das pessoas naquela época demonstrava a sua identidade, o seu lugar no sistema social hierarquizante, através de sinais visíveis que todos podiam ler, como as manchas indeléveis nas mãos de um tintureiro. Poggio beirava o incompreensível. Um indivíduo isolado, fora das estruturas de família e ocupação, fazia muito pouco sentido. O que importava era do que a pessoa fazia parte, e em alguns casos a quem pertencia. O pequeno dístico que Alexander Pope escreveu jocosamente no século XVIII, para que fosse colocado num dos pugs da rainha, poderia ter sido aplicado com sinceridade ao mundo que Poggio habitava:

De Sua Majestade eu sou por bem;
E vós, senhor, sois cão de quem?

O núcleo familiar, a rede de parentesco, a guilda, a corporação, eram essas as bases em que se fundava a noção de pessoa. A independência e a auto-suficiência não tinham peso cultural; na verdade, mal podiam ser concebidas, muito menos valorizadas. A identidade tinha um lugar preciso e bem sabido numa cadeia de comando e obediência. Tentar romper a cadeia era uma tolice. Um gesto impertinente, uma recusa de prestar reverência, ou se ajoelhar, ou descobrir a cabeça diante da pessoa certa, podia acarretar um nariz rasgado ou um pescoço partido. E, afinal, para quê? Não havia alternativas coerentes, pelo menos nenhuma que fosse articulada pela Igreja, ou pela corte, ou pelos oligarcas da cidade. O melhor procedimento era aceitar humildemente a identidade reservada pelo destino: o lavrador só precisava saber lavrar, o tecelão, tecer, o monge, rezar. Era possível, claro, ser melhor ou pior em cada uma dessas coisas; a sociedade em que Poggio se encontrava reconhecia e, num grau considerável, recompensava competências incomuns. Mas valorizar uma pessoa por alguma individualidade inefável, ou por versatilidade, ou curiosidade intensa, era virtualmente inaudito. Na verdade, a Igreja dizia que a curiosidade era um pecado mortal. Deixar-se levar por ela significava correr o risco de uma eternidade no inferno. Quem, então, era esse Poggio? Por que não proclamava a sua identidade nas costas, como as pessoas decentes costumavam fazer? Ele não usava insígnias e não carregava fardos de mercadorias. Tinha o ar confiante de alguém acostumado a viver entre os grandes, mas ele próprio, evidentemente, não era figura de grande importância. Todos sabiam que a aparência tinha uma dessas pessoas importantes, pois aquela era uma sociedade de servos, guardas armados e criados de libré. O estrangeiro, com trajes simples, cavalgava com apenas um acompanhante. Quando pararam na estalagem, o acompanhante, que parecia ser um assistente ou um criado, fez os pedidos; quando o mestre falou, ficou claro que sabia pouco ou nada de alemão, e que sua língua nativa era o italiano». In Stephen Greenblatt, The Swerve, O Nascimento do Mundo Moderno, A Virada, 2011, tradução de Caetano Galindo, Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-114-4.

Cortesia da CdasLetras/JDACT