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Na alma de Benedita qualquer coisa se afundou para sempre. Com uma longa
vertigem, ficou no meio do quarto, quase a desmaiar, os olhos presos no magro
corpo estendido, arquejante, e precipitou-se sobre a cama desfeita, a gemer,
amarfanhada pelo sofrimento, cega de lágrimas. Dos seus lábios, trémulos e
torcidos, saíam palavras entrecortadas de soluços: Manuel! Manuel!... Benedita
aproximou-se da ama e deixou-se cair de joelhos junto dela. Chorava baixinho.
Os seus olhos fitaram o rosto de Manuel Ribeiro, duma serenidade absoluta e
indiferente, e desceram pelo braço até à mão lívida que tocava o tapete.
Lentamente, baixou-se e beijou os dedos frios e inertes. Que importava? Agora
ele já não era de ninguém da Terra. Ninguém tinha direitos sobre ele, a não ser
Deus. Maria Leonor levantou-se de golpe e gritou, com desespero: Meu Deus, meu
Deus! O meu Manuel, por que mo mataste, Senhor? Caminhou deliberadamente para o
oratório e, com o braço direito, varreu as velas, as imagens, os solitários
floridos, que se estilhaçaram no chão. Benedita, estupefacta, levantou-se, e,
apertando Maria Leonor nos braços, gritou: que faz, minha senhora? Sossegue, por
amor de Deus!... Um tropel, vindo do lado da porta, fez-lhes voltar as cabeças
aflitas. Os criados, tremendo de medo, tinham subido a correr as escadas, e
estavam agora entre os umbrais da porta, mirando, com os olhos rasos de
lágrimas, o corpo do patrão. Entraram, um por um, contrafeitos. Dentre eles
saiu o ruído dum soluço e, imediatamente, as lágrimas caíram de todos os olhos.
Rodearam o leito. Jerónimo, o abegão do quintal, levantou com respeito o braço
de Manuel Ribeiro e depô-lo sobre as cobertas, acariciando-lhe a mão gelada com
os dedos calejados e duros.
O
dia amanheceu cinzento e chuvoso. A terra, ensopada de lama, saturava-se da
água, que escorria pelas valas, formando riachos e inundando as culturas. A
porta da casa, abrigados debaixo da alpendrada, os trabalhadores olhavam a
desolação dos campos desertos e espreitavam o céu, carregado e soturno, que se
desfazia em chuva. Do interior, vinha um cheiro pesado de coisas mortas, de
flores emurchecidas. Todo o dia se passou no meio do temporal, que não findava,
entre vultos escuros que entravam e saíam, de olhos vermelhos, suspirando. O
velho Jerónimo, que velara o corpo de Manuel Ribeiro durante a noite inteira e
que em todo o dia não arredara pé de junto dele, saía agora, cansado,
lacrimejante, as mãos um pouco trémulas. Deixou-se cair em cima dum dos bancos
de pedra que ladeavam a entrada e, com a cabeça entre as palmas das mãos,
começou a chorar. Os outros aproximaram-se e ficaram olhando o velho. Ninguém
disse uma palavra sequer. Apenas o ruído da chuva no terreno ensopado e os soluços
sufocados do abegão se ouviam. Depois, um dos homens abeirou-se de Jerónimo e
disse, numa voz sumida: então, senhor Jerónimo, não chore! Deus Nosso Senhor
quis levar o patrão Manuel e lá devia ter as suas razões para isso... Jerónimo
ergueu a cabeça embranquecida e replicou: cala-te, rapaz! Que percebes tu
destas coisas?
Um
homem daqueles não devia morrer tão novo. Seria melhor que Deus me levasse a
mim, que já não faço falta. Não, rapaz, Deus não é justo! Estás enganado,
Jerónimo! Deus é que sabe o que faz. Nós é que não compreendemos que a sua
vontade não pode prender-se com os nossos desejos!... Ouvindo estas palavras,
pronunciadas em tom grave e solene, todos se voltaram. Tiraram os chapéus e os
barretes ao reconhecerem o prior, que, debaixo dum chapéu-de-chuva que escorria
água para cima da capa preta que vestia, os fitava. Jerónimo abanou a cabeça e
respondeu: o senhor prior deve ter razão! Tem razão, com certeza: basta ser
quem é!... Mas não é um dó de alma ver aquele homem, que foi a vida desta
terra, estendido numa cama, inteiriçado, morto?!... Acabou tudo para ele. Nunca
mais há-de perguntar-me, com aqueles modos que nunca vi noutra pessoa em toda a
minha vida: Jerónimo, então como vão os homens? E a alegria que eu tinha quando
lhe dizia que estavam todos bons e contentes com o trabalho!... É verdade,
Jerónimo, que o senhor Manuel Ribeiro, que Deus tenha em sua santa glória, era
um homem de bem. Mas os homens de bem também morrem, como morrem os criminosos,
os maus. E para que isto possa suceder assim, Deus tem as suas razões. Só ele
sabe o que quer e por que o quer. E nós, mortais que somos, nada temos a fazer
senão conformar-nos com a sua vontade... Dizendo isto, o padre avançou por
entre o grupo, abraçou o abegão, que tremia, abalado pelos soluços, e entrou em
casa. Desembaraçou-se da capa e do guarda-chuva e subiu lentamente a escada que
levava ao andar superior. Deteve-se, comovido, quando chegou ao patamar.
Mexendo distraidamente nuns blocos de madeira pintada, duas crianças
encolhiam-se a um canto. Não riam, e nos seus modos o sacerdote notou um
constrangimento indefinido. A atmosfera pesava-lhes nos ombros delicados e
frágeis. A mais velha, um rapaz, ao ver o padre, correu para ele, pulando para
lhe chegar aos ombros. A outra lançou-se atrás do irmão. O pastor baixou-se
para a agarrar e, com os dois ao colo, sentiu as lágrimas correrem-lhe pelas
faces, enquanto pensava: Deus deve ter razão... Eu não sei, mas Deus deve ter
razão... O rapazinho, atentando-lhe no rosto, perguntou, ansioso: que tem? Por
que é que está a chorar?
O
padre depôs as crianças no chão e levou-as para o canto, dizendo: Não tenho
nada, Dionísio, eu não estou a chorar!» In José Saramago, Terra do Pecado (Viúva),
Editorial Minerva, 1947, Editorial Caminho, 1997, 2010, ISBN-978 972 211 145-4.
Cortesia
de EMinerva/ECaminho/JDACT