sábado, 5 de dezembro de 2015

Viúva. Terra do Pecado. 1947. José Saramago. «A atmosfera pesava-lhes nos ombros delicados e frágeis. A mais velha, um rapaz, ao ver o padre, correu para ele, pulando para lhe chegar aos ombros. A outra lançou-se atrás do irmão…»

jdact e wikipedia

«(…) Na alma de Benedita qualquer coisa se afundou para sempre. Com uma longa vertigem, ficou no meio do quarto, quase a desmaiar, os olhos presos no magro corpo estendido, arquejante, e precipitou-se sobre a cama desfeita, a gemer, amarfanhada pelo sofrimento, cega de lágrimas. Dos seus lábios, trémulos e torcidos, saíam palavras entrecortadas de soluços: Manuel! Manuel!... Benedita aproximou-se da ama e deixou-se cair de joelhos junto dela. Chorava baixinho. Os seus olhos fitaram o rosto de Manuel Ribeiro, duma serenidade absoluta e indiferente, e desceram pelo braço até à mão lívida que tocava o tapete. Lentamente, baixou-se e beijou os dedos frios e inertes. Que importava? Agora ele já não era de ninguém da Terra. Ninguém tinha direitos sobre ele, a não ser Deus. Maria Leonor levantou-se de golpe e gritou, com desespero: Meu Deus, meu Deus! O meu Manuel, por que mo mataste, Senhor? Caminhou deliberadamente para o oratório e, com o braço direito, varreu as velas, as imagens, os solitários floridos, que se estilhaçaram no chão. Benedita, estupefacta, levantou-se, e, apertando Maria Leonor nos braços, gritou: que faz, minha senhora? Sossegue, por amor de Deus!... Um tropel, vindo do lado da porta, fez-lhes voltar as cabeças aflitas. Os criados, tremendo de medo, tinham subido a correr as escadas, e estavam agora entre os umbrais da porta, mirando, com os olhos rasos de lágrimas, o corpo do patrão. Entraram, um por um, contrafeitos. Dentre eles saiu o ruído dum soluço e, imediatamente, as lágrimas caíram de todos os olhos. Rodearam o leito. Jerónimo, o abegão do quintal, levantou com respeito o braço de Manuel Ribeiro e depô-lo sobre as cobertas, acariciando-lhe a mão gelada com os dedos calejados e duros.
O dia amanheceu cinzento e chuvoso. A terra, ensopada de lama, saturava-se da água, que escorria pelas valas, formando riachos e inundando as culturas. A porta da casa, abrigados debaixo da alpendrada, os trabalhadores olhavam a desolação dos campos desertos e espreitavam o céu, carregado e soturno, que se desfazia em chuva. Do interior, vinha um cheiro pesado de coisas mortas, de flores emurchecidas. Todo o dia se passou no meio do temporal, que não findava, entre vultos escuros que entravam e saíam, de olhos vermelhos, suspirando. O velho Jerónimo, que velara o corpo de Manuel Ribeiro durante a noite inteira e que em todo o dia não arredara pé de junto dele, saía agora, cansado, lacrimejante, as mãos um pouco trémulas. Deixou-se cair em cima dum dos bancos de pedra que ladeavam a entrada e, com a cabeça entre as palmas das mãos, começou a chorar. Os outros aproximaram-se e ficaram olhando o velho. Ninguém disse uma palavra sequer. Apenas o ruído da chuva no terreno ensopado e os soluços sufocados do abegão se ouviam. Depois, um dos homens abeirou-se de Jerónimo e disse, numa voz sumida: então, senhor Jerónimo, não chore! Deus Nosso Senhor quis levar o patrão Manuel e lá devia ter as suas razões para isso... Jerónimo ergueu a cabeça embranquecida e replicou: cala-te, rapaz! Que percebes tu destas coisas?
Um homem daqueles não devia morrer tão novo. Seria melhor que Deus me levasse a mim, que já não faço falta. Não, rapaz, Deus não é justo! Estás enganado, Jerónimo! Deus é que sabe o que faz. Nós é que não compreendemos que a sua vontade não pode prender-se com os nossos desejos!... Ouvindo estas palavras, pronunciadas em tom grave e solene, todos se voltaram. Tiraram os chapéus e os barretes ao reconhecerem o prior, que, debaixo dum chapéu-de-chuva que escorria água para cima da capa preta que vestia, os fitava. Jerónimo abanou a cabeça e respondeu: o senhor prior deve ter razão! Tem razão, com certeza: basta ser quem é!... Mas não é um dó de alma ver aquele homem, que foi a vida desta terra, estendido numa cama, inteiriçado, morto?!... Acabou tudo para ele. Nunca mais há-de perguntar-me, com aqueles modos que nunca vi noutra pessoa em toda a minha vida: Jerónimo, então como vão os homens? E a alegria que eu tinha quando lhe dizia que estavam todos bons e contentes com o trabalho!... É verdade, Jerónimo, que o senhor Manuel Ribeiro, que Deus tenha em sua santa glória, era um homem de bem. Mas os homens de bem também morrem, como morrem os criminosos, os maus. E para que isto possa suceder assim, Deus tem as suas razões. Só ele sabe o que quer e por que o quer. E nós, mortais que somos, nada temos a fazer senão conformar-nos com a sua vontade... Dizendo isto, o padre avançou por entre o grupo, abraçou o abegão, que tremia, abalado pelos soluços, e entrou em casa. Desembaraçou-se da capa e do guarda-chuva e subiu lentamente a escada que levava ao andar superior. Deteve-se, comovido, quando chegou ao patamar. Mexendo distraidamente nuns blocos de madeira pintada, duas crianças encolhiam-se a um canto. Não riam, e nos seus modos o sacerdote notou um constrangimento indefinido. A atmosfera pesava-lhes nos ombros delicados e frágeis. A mais velha, um rapaz, ao ver o padre, correu para ele, pulando para lhe chegar aos ombros. A outra lançou-se atrás do irmão. O pastor baixou-se para a agarrar e, com os dois ao colo, sentiu as lágrimas correrem-lhe pelas faces, enquanto pensava: Deus deve ter razão... Eu não sei, mas Deus deve ter razão... O rapazinho, atentando-lhe no rosto, perguntou, ansioso: que tem? Por que é que está a chorar?
O padre depôs as crianças no chão e levou-as para o canto, dizendo: Não tenho nada, Dionísio, eu não estou a chorar!» In José Saramago, Terra do Pecado (Viúva), Editorial Minerva, 1947, Editorial Caminho, 1997, 2010, ISBN-978 972 211 145-4.

Cortesia de EMinerva/ECaminho/JDACT