segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Os Teatros de Lisboa. 1874. Júlio C. Machado. «A febre amarella, de que apenas se citava desconfiadamente dois casos em julho, e dez em agosto, caiu nos fins de setembro de 1857, desapiedada, implacavel, aterradora, sobre a capital!»

Bordalo Pinheiro jdact

De acordo com o original

D. Maria
«(…) Por capricho de artista, ou para se ensaiar em géneros de desencontrada indole, tentou em papeis de mui diversa natureza dar a medida da sua vocação percorrendo todas as escalas da arte cómica, e desempenhando a cada passo tão depressa um centro, tão depressa um galã; apparecendo-nos hoje com a fronte calva e grave do ancião, amanhã com o enfarinhado rosto de palhaço: pae nobre agora, namorado cómico em seguida!... Era muitas vezes notável, mas tinha um senão fatal em todos os seus papeis, era massador. Havia occasiões em que divertia tão pouco que chegava a não parecer peccado o ir ao theatro durante a quaresma para o ouvir n’uma comedia! A festa era uma expiação. Tinha sido nos seus tempos o Etelwood da Catharina Howard, e deu-se o chic de ser Ruy Blas n'uma traducção de Eduardo Faria, aquelle bom e amável Eduardo Faria que fez entre differentes extravagâncias memoráveis o diccionario que por ahi anda, de que elle era sempre o primeiro a gracejar e o José Lacerda o ultimo.
O Trapeiro de Paris, e o Casal das giestas foram as suas peças: ou antes as suas verdadeiras peças eram aquellas, em que elle conseguia que os outros fossem bons. Com elle acabaram os grandes espectaculos dos dramas de apparato, que acordaram a curiosidade no animo do publico. Nunca mais se viu no theatro de D. Maria II, dramas de que o annuncio comportasse algum d'aquelles cartazes, que, pelo gigantesco da forma e pela dimensão das letras, são dum prestigio que outr'ora teve o condão de seduzir José Agostinho Macedo: … violentissima tentação d’um cartaz de comedia que toma uma esquina de cabo a rabo, desafia e titilla a nossa curiosidade! Um cartaz é um verdadeiro prestigio; se ha bruxaria no mundo é o Diabo de um cartaz de comedia. Os que se pregam no Malcosinhado são uns lençoes de casados, e quando é dia de beneficio é o cartaz como a vella grande da nau Centauro!
Assim o dizia já, na segunda carta do Fogaça, José Agostinho, com a sua chistosa graça de grosseirão; isto prova que o cartaz monstro não data apenas do Alcaide de Faro, o que muita gente cuida, porém já d’aquelles tempos, em que um gallego com um boião de papas, um pincel de caiar e uma bola de papel ás costas, ia pregar nas esquinas um papelão monstro com dois triângulos romboides! Não foi unicamente aos seus discipulos que os conhecimentos d’arte do Epiphanio se tornaram uteis: também os companheiros lhe deveram lição em mais d’um papel, e a grande actriz portugueza, Emilia Neves, alcançou uma boa parte dos seus triumphos, auxiliada pelos conselhos d’esse ensaiador. Os destinos outr'ora brilhantes do artista que fizera épocha para o theatro portuguez, haviam no ultimo tempo da sua vida perdido quasi todo o prestigio que os illuminava: a imprensa mostrava-se adversa ao seu methodo, e o publico desgostava-se por vezes do tom da sua phrase. E todavia quando acordava da atonia em que o espirito parecia haver-se-lhe suffocado, era grande! A Pobreza Envergonhada e Espinhos e Flôres, foram os últimos signaes que deu de vida artistica. Sinto tristeza ao escrever os titulos d’estes dois dramas, porque elles marcam o final do drama d’essa existência que tenho contado aqui. Época fatalmente triste para a população de Lisboa, épocha que recorda a cada um uma saudade e um tumulo!
A febre amarella, de que apenas se citava desconfiadamente dois casos em julho, e dez em agosto, caiu nos fins de setembro de 1857, desapiedada, implacavel, aterradora, sobre a capital! O cholera havia sempre atacado quasi exclusivamente as classes pobres, mas a febre amarella não teve predilecções do primeiro ao ultimo periodo do seu devastador reinado. Os felizes da vida tiveram de recuar horrorisados ou de cair como os pobres, ao sopro irremessivel d’este inimigo commum! O terror apoderou-se então de todos os espíritos e de todos os corações: nenhuns limites prováveis, anniquillavam a sua duração : Lisboa tomou um aspecto horroroso; a população coberta de luto lembrava-nos as mortes da véspera: e as macas que se cruzavam, as mortes do dia seguinte!... Também, a philantropia acordou então; e os actos de generosidade desceram da casa dos ricos, e, consolando as classes indigentes, pareceram pedir-lhes perdão, em face da morte, da indifferença com que nos tempos bons da vida insultavam a miséria com o luxo e com a avareza! Mas, não iam depôr-lhes a esmola á cabeceira: atiravam-lh’a e fugiam, ou mandavam-a de Cintra, de Bemfica, do Lumiar, de Bellas, de Cacilhas, de Pedroiços, onde as habitações chegaram a um preço fabuloso, tanto foi o impulso com que a população lisbonense desertou! Os pares, os deputados, os empregados públicos, abandonaram as camaras e as secretarias. A familia real e os pobres, foram apenas os que permaneceram face a face com a morte; isto é dizer-lhes que os actores ficaram também, porque n’este paiz os actores são do numero dos pobres!» In Júlio César Machado, Os Teatros de Lisboa, Ilustrações de Bordalo Pinheiro, Livraria Editora Mattos Moreira, 1874, PN 2796 L5M25, Library Mar 1968, University of Toronto.


Cortesia de LEMMoreira/1874/Bordalo Pinheiro/JDACT