domingo, 20 de dezembro de 2015

O Primitivo Teatro Português. Luiz Francisco Rebello. «… visão unilateral do teatro, acabam por ter de remeter-se a uma explicação ainda mais vaga, ainda mais gratuita, ainda mais abstracta, para radicar no autor da Farsa de Inês Pereira a fundação do nosso teatro: o génio de Gil Vicente»

jdact

«(…) Nem todos os nossos historiadores de literatura reconhecem, porém, esta evidência. Enquanto uns vêem em Gil Vicente o representante mais eloquente do velho teatro moribundo em Portugal (António José Saraiva) e nas suas obras a crista triunfante de uma vaga, até então de pouca altura, mas que já vinha de longe, do coração da Idade Média (Mário Martins), outros consideram a existência de um teatro pré-vicentino menos ainda que uma hipótese: uma suposição gratuita (Costa Pimpão). Todavia, já em fins do século passado, Teófilo Braga dedicava a introdução de cada um dos seus dois volumes sobre Gil Vicente e as Origens do Teatro Nacional e Escola de Gil Vicente e Desenvolvimento do Teatro Nacional, ambos publicados em 1898, ao rastreio de manifestações dramáticas anteriores à obra do poeta quinhentista, a que aliás dedicara, em 1870, o capítulo inicial do primeiro tomo da sua História do Teatro Português. O segundo daqueles volumes abre, significativamente, por estas palavras: os elementos tradicionais e populares do teatro português a que Gil Vicente deu forma literária foram a primeira condição para a estabilidade da sua obra. Semelhante diversidade de opiniões assenta no equívoco denunciado nas considerações pelas quais iniciámos o presente trabalho. Já na sua citada Vida da Arte Teatral, Baty e Chavance haviam chamado a atenção para as duas grandes correntes que, ao longo da evolução histórica do teatro, desenham a sua trajectória: uma, coincidente com as suas origens mais remotas, concede toda a importância à representação, ao ritmo, à música, às linhas, às cores, isto é, ao actor e ao espectáculo: corresponde às representações mágicas ou litúrgicas dos povos primitivos, aos mistérios eleusinos, aos mimos da decadência romana, à commedia dell’arte, ao ballet, à ópera clássica, à pantomima dos funâmbulos; a outra, posteriormente surgida, por sua vez concede toda a importância ao texto e não admite os elementos espectaculares e mímicos senão como acessórios, reduzindo assim a arte dramática a um género literário.
Ora o teatro, como vimos, resulta da convergência, da interpenetração destas duas correntes, que, longe de se oporem, uma à outra se completam; ele é, nos seus mais genuínos momentos, a resultante do equilíbrio conseguido entre um texto e a sua representação espectacular, a síntese dialéctica desses factores complementares. Aquele sem esta limitar-se-á a uma existência apenas virtual; esta sem aquele estará condenada a uma existência fruste. Assim, os que negam pura e simplesmente a improbabilidade de um teatro português anterior a Gil Vicente, fazem-no em nome da corrente que reduz a arte dramática a um género literário, para repetir as palavras de Baty e Chavance. Desprezando preconceituosamente o elemento espectacular, em nome de uma abstracta pureza literária que as grandes obras da dramaturgia universal repelem, aqueles que assim pensam, amarrados a uma estreita visão unilateral do teatro, acabam por ter de remeter-se a uma explicação ainda mais vaga, ainda mais gratuita, ainda mais abstracta, para radicar no autor da Farsa de Inês Pereira a fundação do nosso teatro: o génio de Gil Vicente.
Se pomos de parte uma tal explicação, cujo intrínseco romantismo bastaria para a tornar desde logo suspeita à moderna crítica literária, não é evidentemente por recusarmos a impetuosa genialidade do dramaturgo que fazia os autos a el-rei, como também a fermentação dramática que, em Inglaterra e pela mesma época, precedeu Shakespeare, ou Molière em França no século seguinte, em nada lhes diminui o génio incontestável. Mas a personalidade e a obra do criador do teatro nacional como categoria literária autónoma, e é aí que reside a verdadeira grandeza de Gil Vicente, não poderiam estruturar-se sem os gérmenes dramáticos da nossa Idade Média, nem desenvolver-se sem as condições que a corte do Rei Venturoso lhes proporcionou. Com Gil Vicente, pois, o teatro português apenas abandona o estado larvar, embrionário, em que desde a fundação da nacionalidade até aos fins do século XV vegetava, para assumir enfim uma existência literária. Numa palavra: sai da sua pré-história para entrar na sua história propriamente dita». In Luiz Francisco Rebello, O Primitivo Teatro Português, Instituto de Cultura Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Oficinas Gráficas da Livraria Bertrand, 1977.

Cortesia do ICamões/JDACT