domingo, 20 de dezembro de 2015

O Teatro Naturalista e Neo-Romântico (1870-1910). Luiz Rebello. «Notava, de resto, Lopes Mendonça, numa conferência sobre A Crise do Teatro Português, proferida em 1901, que proporcionalmente, raras serão as capitais em que a população indígena, sem auxílio da flutuante, que entre nós é mínima…»

Cortesia de wikipedia

O Teatro em 1871
«(…) Na sua palestra sobre a Nova Literatura, Eça de Queirós, falando em termos gerais sobre o realismo como nova expressão da arte, sustentou que ele deveria ser perfeitamente do seu tempo, tomar a sua matéria na vida contemporânea; proceder pela experiência, pela fisiologia, ciência dos temperamentos e dos caracteres; ter o ideal moderno que rege as sociedades, isto é: a justiça e a verdade, conceitos que encerravam, implicitamente, a condenação de quase todo o teatro que então ocupava os palcos nacionais. Já na conferência de Augusto Seromenho, que precedera a de Queirós, essa condenação fora explícita: tal como o romance, o drama mostrava-se perverso, corrupto, falso e falto de probidade intelectual, apresentando-se até como original na maior parte dos casos quando era tradução descarada, roubo conhecido. Esta análise seria retomada por Eça de Queirós no texto de abertura das Farpas (datado de Junho de 1871, precisamente o mês em que as Conferências foram proibidas) e desenvolvida em Dezembro seguinte, num artigo sobre o teatro em 1871, depois recolhido no primeiro volume de Uma Campanha Alegre. Considerando o teatro como uma necessidade inteligente e moral, e reconhecendo-lhe importância pública, o autor dos Maias inseria a sua actual degradação no quadro mais vasto e geral da decadência nacional e não hesitava em afirmar que, entre farsas tão melancólicas como uma ruína e dramas tão cómicos como uma caricatura, ele havia perdido a sua ideia, a sua significação, e até o seu fim. Duas eram, fundamentalmente, as causas a que Eça atribuía a degenerescência da arte dramática: o abaixamento geral do espírito e da inteligência e as condições industriais e económicas dos teatros (o autor de um opúsculo publicado no ano anterior, Carl Busch, imputava o atraso do teatro português a uma terceira causa, que se sentia tentado a considerar a única: a falta da crítica, pela qual responsabilizava o provincianismo da nossa vida literária e artística). Ao lado de algumas afirmações discutíveis pela sua formulação dogmática e absoluta (como, por exemplo, a de que o português não tem génio dramático; nunca o teve, mesmo entre as passadas gerações literárias, hoje clássicas, ou de que a nossa literatura de teatro toda se reduz ao Frei Luís de Sousa), deparam-se muitas observações pertinentes, nomeadamente as que aludem à pobreza geral e à carestia da vida que deixavam a bolsa cansada e incapaz de teatros.
O teatro tornava-se assim uma espécie de feudo exclusivo de uma classe privilegiada, para a qual funcionava, não como (são ainda palavras suas) uma curiosidade do espírito, mas como um ócio de sociedade. Para essa minoria desprovida de exigências, ou sequer de curiosidades, intelectuais, actores sem estudo, sem escola, sem incentivos, sem ordenados, sem público, ainda que em muitos casos de talento e de vontade, representavam más traduções e imitações do repertório francês, muitas vezes anunciadas como originais, que seguiam invariavelmente um de três modelos fixos: o drama sentimental e bem escrito, de belas imagens, ode dialogada em que uma personagem lança frases soberbamente floridas, a outra retruca em períodos sonoros e melódicos, e a acção torna-se assim um tiroteio de prosas ajanotadas; o drama de efeito, com o que se chama finais de acto, lances bruscos, um embuçado que aparece, uma mãe que se revela; e a farsa com os velhos motivos de pilhéria lusitana, o empurrão, o tombo, a matrona bulhenta, o general de barrete de dormir...
Fora deste quadro limitado e falso (em que a ópera italiana de S. Carlos, largamente subsidiada pelo governo, desempenhava um papel adormecedor e alienante), em vão se procuraria encontrar o que Eça insinuava deverem ser os requisitos de um teatro que fosse, ao mesmo tempo, uma lição para o critério no presente e no futuro um documento para a história: o estudo verdadeiro e profundo de sentimentos, caracteres solidamente desenhados, costumes bem postos em relevo, tipos finamente analisados, estudos sociais concretizados numa acção, a natureza, a realidade, a observação da vida. Semelhante diagnose poderá afigurar-se excessivamente severa, sobretudo se tivermos em conta que em 1871 funcionavam em Lisboa, para uma população ligeiramente superior a 200 000 habitantes, ou seja cerca de 5% da população total do país, segundo o censo de 1864, oito teatros, três deles construídos ainda no século XVIII (os Teatros da rua dos Condes, do Salitre e de S. Carlos) e cinco inaugurados entre 1846 e 1870 (D. Maria II, Ginásio, Príncipe Real, Trindade e Taborda). Mas já dissemos que peças se representavam nesses Teatros e a que público se destinavam. No entanto, até ao fim do século o interesse pelo teatro não decresceria: em 1899 a população de Lisboa subira para 356 000 habitantes e o número de Teatros para dez, abstraindo das salas suburbanas de Alcântara e Belém, quase todas aliás de efémera duração, e das salas destinadas a espectáculos de circo e variedades, porquanto aos oito que havia em 1871, desfalcados de um que entretanto fora demolido (o antigo Salitre, que em 1858 passara a denominar-se Variedades), vieram acrescentar-se três (os Teatros do Rato, Avenida e D. Amélia). E no decurso dessas três últimas décadas do século XIX construíram-se, fora de Lisboa, mais de 75 casas de espectáculos, das quais cinco no Porto e sete nas ilhas adjacentes, cerca de quatro vezes mais do que nos trinta anos anteriores.
Notava, de resto, Lopes Mendonça, numa conferência sobre A Crise do Teatro Português, proferida em 1901, que proporcionalmente, raras serão as capitais em que a população indígena, sem auxílio da flutuante, que entre nós é mínima, concorra com maior assiduidade aos espectáculos públicos. Pena é que faltem índices estatísticos dessa concorrência, permitindo distribui-la pelos diversos estratos sociais. Mas este movimento, salvo raras excepções, não foi acompanhado de uma correspondente subida de nível literário e artístico dos espectáculos. Ramalho Ortigão numa página das Farpas em 1876, Moniz Barreto no seu estudo sobre a literatura portuguesa contemporânea que servia de introdução à Revista de Portugal em 1889, João Câmara numa das suas crónicas do Ocidente, em 1895, feriam todos a mesma tecla: enquanto Barreto atribuía à ausência duma comunidade de sentimentos e dum acordo de opiniões na consciência colectiva a agonia da literatura dramática entre nós, o dramaturgo de Os Velhos constatava a mediocridade assustadora a que o nível intelectual da sociedade havia descido». In Luiz Rebello, O Teatro Naturalista e Neo-Romântico (1870-1910, Série Literatura, volume 16, Instituto de Cultura Portuguesa, Livraria Bertrand, 1978, Centro Virtual Camões, Instituto Camões.

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