segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

A Costureira. Kate Alcott. «O seu patrão lhe paga? Não pelos vestidos. Mas sou boa, e mereço ser paga. Talvez isso fosse arrogante demais. Ela respirou fundo e lançou todas as fichas. Quero trabalhar com a senhora. É a melhor estilista do mundo…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Cherbourg, França. 10 de Abril de 1912
«(…) Referências? Posso pedir que sejam enviadas pelo correio. Qualquer coisa que a senhora quiser. Lá no meio do Atlântico? Sempre há um marconigrama. Tess havia lido sobre eles e esperava que estivesse dizendo a coisa certa. Lucile de repente se cansou daquele vaivém. Lamento, não sei nada a seu respeito, disse. Não será possível. Ela se virou para conversar com Cosmo. Desesperada, Tess teve uma ideia. Olhe, por favor, olhe, pediu, abrindo a gola do vestido. Eu fiz isso. Tentei copiar a gola de um dos seus vestidos que vi no jornal. É uma cópia ruim, claro, mas... Nada mau, murmurou Elinor, observando a gola. Estava primorosamente virada, um linho firme desenhado para ser usado tanto aberto como fechado, requerendo pontos cuidadosos. Um trabalho bastante complexo. Incomum para uma servente. Lucile lançou um olhar interessado na direcção de Tess, depois inspecionou a gola com os dedos. Era um de seus melhores projectos. A garota havia cortado a gola em proporção perfeita com o seu vestido e costurado à mão. Não havia uma só ruga no tecido. Você está dizendo que fez isso?, inquiriu ela. Sim, fiz. Quem a ensinou a costurar? Minha mãe, que é muito habilidosa. Tess se empertigou com orgulho. Sou conhecida no condado. E corto os meus próprios modelos. Todo mundo corta, minha querida. Isso só requer tesoura. Está querendo dizer que desenha, presumo eu. Lucile estendeu a mão sem cerimónia e ergueu a manga do vestido de Tess, notando a habilidade do trabalho de montagem da garota. Sim. Desenho e costuro. Faço tudo. O seu patrão lhe paga? Não pelos vestidos. Mas sou boa, e mereço ser paga. Talvez isso fosse arrogante demais. Ela respirou fundo e lançou todas as fichas. Quero trabalhar com a senhora. É a melhor estilista do mundo, e não posso acreditar na sorte que tive de encontrá-la. Os seus vestidos são uma inspiração... Quem é capaz de desenhar como a senhora? Por favor, me dê uma oportunidade. A senhora não se vai arrepender.
Lucile encarou a menina, com expressão indecifrável. Algo passou por seus olhos enquanto os espectadores ao redor caíam em silêncio, esperando o que viria em seguida. Ela provavelmente é independente demais para você, disse Elinor baixinho, de lado. Nunca se sabe. Ela talvez não seja bem o que diz ser. A expressão de Lucile não mudou, embora um pequenino sorriso tenha curvado os seus lábios. Talvez. Mas eu poderia manter minhas joias trancadas no cofre do navio, não é? Ela se dirigiu a Tess. Sente-se satisfeita em ser uma empregada? Não estou oferecendo nada mais do que isso. Farei o que a senhora quiser. Só quero uma oportunidade de provar o meu valor e trabalhar para a senhora. Sim, sim, ela faria qualquer coisa. Não sonharia acordada nem faria montinhos com os cantos dos lençóis, trabalharia, aprenderia e mudaria tudo. Tess estava respirando com dificuldade. Sentiu as dobradiças do destino rangerem, uma porta se abrir..., ou será que se estava fechando? Que ela goste de mim, rezou ela.  Qualquer coisa? Tess se empertigou. Qualquer coisa respeitável, nada mais, disse.
Lucile avaliou com o olhar a silhueta da garota, observando o cabelo escuro emaranhado, as maçãs do rosto altas e rosadas e o queixo altivo, as botas desgastadas com um cadarço partido. Vamos embarcar em breve. Está preparada para partir daqui a uma hora, mais ou menos?, inquiriu ela. Sim, posso partir imediatamente. Tess emprestou um tom duro e rígido às suas palavras. Só uma oportunidade, pensou ela, não estrague tudo. O grupinho ao redor de Lucile parecia estar contendo a respiração colectivamente. Ela hesitou mais um segundo. Certo, está contratada, disse no final. Como empregada, apenas. Elinor lançou-lhe um olhar surpreso. Isso não é um pouco impulsivo, Lucy? A irmã não respondeu, simplesmente continuou olhando para Tess como se focasse o vazio, à distância. Obrigada, a senhora não se vai arrepender, disse Tess, trémula, tentando não esmorecer diante do olhar incessante de Lucile. Você precisa se vestir adequadamente para o trabalho, quer seja uma pessoa instruída ou não. Lucile estava pisando em terreno firme novamente. Deve-me chamar de madame. E precisa de uma touca. Ela fez um sinal para Cosmo. Meu marido, Sir Cosmo, cuidará dos detalhes. Tess sorriu gentilmente para o homem alto e magro de bigode grande e bem cuidado que deu um passo à frente para falar com ela. Depois de lhe fazer algumas perguntas, teve uma conversa sussurrada com um funcionário da White Star Line. Era, claro, uma passagem para uma servente, portanto não era necessário passaporte. Não haveria problemas? Eles terminaram a conversa com um aperto de mão firme. Tess expirou o ar com tanta intensidade que sentiu tontura. Sim, a porta estava-se abrindo.
Ela segurou no corrimão, descendo atrás de lady Duff Gordon por degraus escorregadios até um escaler com aparência encardida e meio frágil. Um oficial de uniforme da White Star dissera a todos os passageiros que o navio era grande demais para o porto raso de Cherbourg, portanto todos tinham de ir utilizando o escaler. Quão grande seria o navio, para ter provocado o rompimento do cabo de ancoragem de outra embarcação a caminho de Southampton? Tess procurou enxergar através da neblina cinzenta e fina, ansiosa para vislumbrá-lo. A névoa levantou. E lá estava ele, assomando tão altivo, tão orgulhoso e distinto, que parecia governar os mares, e não o contrário. Quatro chaminés enormes se erguiam graciosamente em direcção ao céu. Nove deques, e Tess sentiu o pescoço doer no esforço de contá-los. Não era de admirar que se chamasse Titanic. As pessoas que se amontoavam para prender o escaler ao navio estavam fora de proporção em relação a ele, mais pareciam formigas atarefadas.
Um marinheiro estendeu a mão para Tess, chamando-a para subir na prancha de embarque. Ela obedeceu, concentrando-se agora em colocar um pé atrás do outro. Estava acontecendo, não tinha mais volta. Adeus, Sussex; adeus, patroa de rosto enrugado e filho tarado; adeus, todos. Até ao seu lar, à sua mãe, aos irmãos e irmãs, a quem talvez ela jamais voltasse a ver novamente. O seu coração tremeu. E ela deu o passo seguinte com firmeza. Estava no topo. Um casal à frente, um homem com um queixo belamente esculpido e uma mulher com um casaco de pele branca, deu um passo para dentro do navio e parou para um abraço. Que bonito, que espontâneo. O homem, cujas mãos cheias de veias denunciavam que ele não era tão jovem quanto tinha parecido à primeira vista, de repente rodopiou a mulher num movimento preciso que terminou por fazê-la girar, rindo, para se aninhar nos braços dele. Os dois saltitaram com leveza, afastando-se, diante de aplausos aqui e ali. Seriam artistas?
Bem à frente dela estava um homem com rosto belo e inquieto dominado por um queixo forte e bem modelado e um nariz aquilino delgado. As suas mãos estavam enfiadas nos bolsos de um casaco de cashmere marrom imaculado. Seus olhos pareciam nublados. De tristeza? O cabelo estava ficando grisalho nas têmporas; provavelmente tinha uns quarenta anos, adivinhou ela. Um homem de negócios, que olhava constantemente o relógio de pulso. Parecia envolvido pela névoa, e não reagiu ao pequeno show à sua frente, apenas parou um instante para observar o casal alegre com o que ela supôs ser uma certa melancolia». In Kate Alcott, A Costureira, Geração Editora, tradução de Ana Mesquita, 2012/2013, ISBN 978-858-130-131-0.

Cortesia de Geração E./JDACT