sábado, 12 de dezembro de 2015

Justine. Quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell. «Ela soltou um ligeiro suspiro, como para manifestar que a minha resposta a pusera à vontade e sentou-se acendendo um cigarro, fumava tabaco francês, aspirando pequenas fumaças que lançava para o espaço em fios azulados…»

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«(…) Fazia frio cá fora e eu ia passando pelas lojas da Rua Fouad, fortemente iluminadas. Diante de uma mercearia, vi uma pequena caixa de azeitonas com o nome Orvieto no rótulo, e, tomado bruscamente pela nostalgia do bom lado do Mediterrâneo, entrei na tenda; comprei a caixa; pedi que a abrissem, e sentando-me numa mesa de mármore, sob a lúgubre claridade suja, comecei a devorar a Itália, a sua carne queimada pelo sol, o seu solo fecundo, as suas vinhas ilustres. Sentia que Melissa nunca seria capaz de compreender este meu estado de espírito. Seria obrigado a mentir, dizendo que tinha perdido o dinheiro. Não vi imediatamente o comprido carro que ela tinha deixado na rua sem parar o motor. Entrou na lojeca com um ar brusco e decidido e disse, com aquele tom de autoridade que possuem as lésbicas e que as mulheres ricas usam quando se dirigem a pessoas manifestamente pobres: que entende por natureza antinómica da ironia?, ou qualquer coisa desse género, e que não me ocorre agora à memória. Não conseguindo arrancar-me do meu sonho italiano, ergui a cabeça com ar aborrecido e vi-a, nos três espelhos que guarneciam três das paredes, debruçar-se para mim, o rosto sombrio e um pouco assustador, simultaneamente perturbado e cheio de uma arrogante reserva. Naturalmente eu já tinha esquecido tudo quanto podia ter dito sobre a natureza da ironia e tudo o mais, e respondi-lhe isso mesmo com um ar de indiferença que não era totalmente fingido. Ela soltou um ligeiro suspiro, como para manifestar que a minha resposta a pusera à vontade e sentou-se acendendo um cigarro, fumava tabaco francês, aspirando pequenas fumaças que lançava para o espaço em fios azulados que ficavam suspensos na luz crua da sala. Não sabia que atitude adoptar diante da franqueza com que ela me olhava e que eu considerava algo embaraçosa, era como se ela estivesse a avaliar o uso que poderia extrair da minha pessoa. Gostei da maneira como se referiu aos versos que ele escreveu sobre a cidade, disse ela. Fala bem o grego. Naturalmente é escritor.
Naturalmente, respondi eu. É sempre doloroso não se ser conhecido. Parecia inútil prosseguir neste caminho. Sempre tive horror às conversas literárias. Ofereci-lhe uma azeitona que ela aceitou; cuspiu o caroço, como um gato, na sua mão enluvada e deixou-o ficar, como se o tivesse esquecido. Disse, então: Gostaria de apresentá-lo a Nessim, meu marido. Quer vir? Um polícia tinha aparecido à porta, manifestamente intrigado com o automóvel abandonado. Foi essa a primeira vez que eu entrei na grande casa de Nessim com as suas estátuas, as suas palmeiras e os seus nichos, os seus Courbet, os seus Bonnard e tudo o mais. Era, simultaneamente, magnífico e medonho. Justine subiu vivamente a escadaria monumental, detendo-se apenas para transferir o caroço de azeitona do bolso do seu casaco para um vaso da China, chamando Nessim em todos os tons. Fomos de sala em sala, povoando-as de sons. A resposta veio do grande estúdio no sótão, e precipitando-se para ele, como um cão, ela atirou-se, metaforicamente, aos pés do marido, ficando ligeiramente para trás a abanar alegremente a cauda. Tinha conseguido apanhar-me.
Nessim estava sentado no último degrau de um escadote e preparava-se para ler, mas começou a descer lentamente, observando-nos com toda a atenção. A sua timidez não sabia como reagir diante das minhas roupas modestas, dos meus cabelos encharcados e da minha caixa de azeitonas, e eu próprio não podia dar-lhe qualquer explicação da minha presença, visto que ignorava, até, o motivo por que me tinham trazido ali. Compadeci-me dele e ofereci-lhe uma azeitona; sentámo-nos e acabámos as azeitonas falando, se bem me lembro, de Orvieto, que nenhum de nós conhecia, enquanto Justine ia pelos aperitivos. É uma grande consolação para mim recordar este primeiro encontro. Nunca me senti mais perto deles, quero dizer, mais perto do casal que eles formavam; pareciam-me, então, esse animal ideal de duas cabeças que o casamento pode produzir. Vendo a luz quente e benevolente que brilhava nos olhos de Nessim, compreendi, recordando-me dos escandalosos rumores que corriam acerca de Justine, que tudo quanto ela pudesse ter feito, mesmo aquilo que aos olhos do mundo pudesse passar por repreensível ou chocante, tinha, num certo sentido, sido feito por amor dele. O amor de Justine por seu marido era como uma pele dentro da qual ele se encontrava, tal como Hércules em menino; e os esforços que ela fazia para se realizar não a tinham afastado dele, muito pelo contrário». In Lawrence Durrell, Quarteto de Alexandria, 1957, Justine, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.

Cortesia de PdQuixote/JDACT