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«(…) Nessim estava de
mal com a cidade, mas como a sua considerável fortuna o punha diariamente em contacto
com os negociantes locais, estes demonstravam a seu respeito uma indulgência
risonha, como a que se adopta para com um pobre de espírito. E se entrávamos no
seu gabinete, esse sarcófago todo de móveis tubulares e em vitrais, não era
raro encontrá-lo sentado, como um órfão, diante da secretária (coberta de
campainhas, polés e candeeiros), comendo pão preto e lendo Vasari, enquanto com
ar distraído ia assinando letras e recibos. Levantava então para o visitante o rosto
pálido em forma de amêndoa, esforçando-se por sorrir, mas nem sempre logrando
sair do seu universo secreto, com um olhar quase suplicante. E, contudo, sob
esta aparência amável e desinteressada, ocultava-se uma impiedosa lucidez, e os
seus empregados surpreendiam-se ao descobrir que, a despeito do seu ar ausente,
não ignorava o menor facto respeitante aos seus negócios, e que as transacções
que conduzia eram sempre fundadas num inesperado bom-senso comercial. Os
empregados consideravam-no uma espécie de oráculo, no entanto (diziam, suspirando
e dando de ombros), parecia não dar a esse facto a menor importância! Não dar importância
ao ganho, eis o que para os alexandrinos é o expoente máximo da loucura.
Conheci-os de vista
durante muito tempo antes de nos encontrarmos, como, de resto, conhecia toda a
gente na cidade! De vista e igualmente de reputação, dado que a sua maneira de
viver, altiva, desenvolta e sem condescender com as convenções, tinha tornado o
casal notório entre os nossos provinciais. Ela passava por ter tido um grande
número de amantes; e Nessim passava por um mari
complaisant. Tinha-os visto dançar juntos em diversas ocasiões, ele
esguio, com uma cintura fina de mulher, e bonitas mãos de dedos afilados; a
cabeça adorável de Justine, o ângulo muito pronunciado do seu nariz árabe e os
olhos translúcidos, dilatados pela beladona, lançando em torno olhares de
pantera semidomesticada. Depois, um dia, eu aceitei proferir uma conferência
sobre o poeta da cidade no Atelier des Beaux-Arts, espécie de clube onde os
amadores habilidosos podiam conviver, alugar estúdios, etc. Aceitei, unicamente
porque isso me proporcionava um pequeno ganho suplementar e porque, aproximando-se
o Outono, Melissa tinha necessidade de um novo casaco. Mas foi uma tarefa
dolorosa, e eu sentia o velho perto de mim, assediando, por assim dizer, as
ruelas obscuras, em torno da sala de conferências, e impregnando-as com o
perfume dos seus versos inspirados nos amores de miséria, e, contudo, fecundos,
que ele experimentara, amores que talvez tivesse pago, amores fugazes a que o
seu estro conferia vida e eternidade, e com que demorada paciência e ternura
ele tinha fixado o minuto adventício e fixado todos os seus cambiantes! Que
impertinência a minha falar sobre um ironista que, com tanta naturalidade e delicadeza,
fez das ruas e dos bordéis de Alexandria o objecto da sua obra! E, o que é
mais, falar diante de um público que não é constituído por marçanos de
mercearia e pequenos empregados, que ele imortalizou, mas por dignas damas da
sociedade para quem a cultura que ele representava era uma espécie de banco de
sangue: elas tinham vindo receber a sua transfusão. Algumas tinham perdido uma
tarde de bridge, para me ouvir,
sabendo perfeitamente que não se sentiriam transportadas, mas simplesmente
estupefactas.
Tudo quanto me lembro de
ter dito é que me sentia perseguido pelo seu rosto, o rosto docemente triste da
última fotografia; e quando a onda de esposas dos bons burgueses se escoou pela
escadaria de pedra, perdendo-se nas ruas húmidas onde os seus automóveis
esperavam, descobri, no momento de deixar a sala, que para trás ficara uma
estudante solitária das paixões e das artes. Estava sentada no fundo da sala,
pensativa, de pernas cruzadas, numa atitude masculina, fumando um cigarro. Não
olhava para mim, mas fixava o soalho em frente dos seus pés com um ar vulgar. Senti-me
lisonjeado, pensando que pelo menos uma pessoa tinha compreendido as minhas dificuldades.
Peguei na gabardina e na pasta húmida e lancei-me para as ruas varridas por uma
chuvinha fina e penetrante que o vento do litoral fustigava. Tomei o caminho de
casa onde Melissa a essa hora teria posto a mesa, coberta com uma folha de
jornal, depois de ter mandado Hamid buscar o assado ao padeiro, porque não
tínhamos forno». In Lawrence Durrell, Quarteto de Alexandria, 1957, Justine, tradução de
Daniel Gonçalves, 1960/1961, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.
Cortesia de
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