sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Justine. Quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell. «Ela passava por ter tido um grande número de amantes; e Nessim passava por um ‘mari complaisant’. Tinha-os visto dançar juntos em diversas ocasiões, ele esguio, com uma cintura fina de mulher, e bonitas mãos…»

jdact

«(…) Nessim estava de mal com a cidade, mas como a sua considerável fortuna o punha diariamente em contacto com os negociantes locais, estes demonstravam a seu respeito uma indulgência risonha, como a que se adopta para com um pobre de espírito. E se entrávamos no seu gabinete, esse sarcófago todo de móveis tubulares e em vitrais, não era raro encontrá-lo sentado, como um órfão, diante da secretária (coberta de campainhas, polés e candeeiros), comendo pão preto e lendo Vasari, enquanto com ar distraído ia assinando letras e recibos. Levantava então para o visitante o rosto pálido em forma de amêndoa, esforçando-se por sorrir, mas nem sempre logrando sair do seu universo secreto, com um olhar quase suplicante. E, contudo, sob esta aparência amável e desinteressada, ocultava-se uma impiedosa lucidez, e os seus empregados surpreendiam-se ao descobrir que, a despeito do seu ar ausente, não ignorava o menor facto respeitante aos seus negócios, e que as transacções que conduzia eram sempre fundadas num inesperado bom-senso comercial. Os empregados consideravam-no uma espécie de oráculo, no entanto (diziam, suspirando e dando de ombros), parecia não dar a esse facto a menor importância! Não dar importância ao ganho, eis o que para os alexandrinos é o expoente máximo da loucura.
Conheci-os de vista durante muito tempo antes de nos encontrarmos, como, de resto, conhecia toda a gente na cidade! De vista e igualmente de reputação, dado que a sua maneira de viver, altiva, desenvolta e sem condescender com as convenções, tinha tornado o casal notório entre os nossos provinciais. Ela passava por ter tido um grande número de amantes; e Nessim passava por um mari complaisant. Tinha-os visto dançar juntos em diversas ocasiões, ele esguio, com uma cintura fina de mulher, e bonitas mãos de dedos afilados; a cabeça adorável de Justine, o ângulo muito pronunciado do seu nariz árabe e os olhos translúcidos, dilatados pela beladona, lançando em torno olhares de pantera semidomesticada. Depois, um dia, eu aceitei proferir uma conferência sobre o poeta da cidade no Atelier des Beaux-Arts, espécie de clube onde os amadores habilidosos podiam conviver, alugar estúdios, etc. Aceitei, unicamente porque isso me proporcionava um pequeno ganho suplementar e porque, aproximando-se o Outono, Melissa tinha necessidade de um novo casaco. Mas foi uma tarefa dolorosa, e eu sentia o velho perto de mim, assediando, por assim dizer, as ruelas obscuras, em torno da sala de conferências, e impregnando-as com o perfume dos seus versos inspirados nos amores de miséria, e, contudo, fecundos, que ele experimentara, amores que talvez tivesse pago, amores fugazes a que o seu estro conferia vida e eternidade, e com que demorada paciência e ternura ele tinha fixado o minuto adventício e fixado todos os seus cambiantes! Que impertinência a minha falar sobre um ironista que, com tanta naturalidade e delicadeza, fez das ruas e dos bordéis de Alexandria o objecto da sua obra! E, o que é mais, falar diante de um público que não é constituído por marçanos de mercearia e pequenos empregados, que ele imortalizou, mas por dignas damas da sociedade para quem a cultura que ele representava era uma espécie de banco de sangue: elas tinham vindo receber a sua transfusão. Algumas tinham perdido uma tarde de bridge, para me ouvir, sabendo perfeitamente que não se sentiriam transportadas, mas simplesmente estupefactas.
Tudo quanto me lembro de ter dito é que me sentia perseguido pelo seu rosto, o rosto docemente triste da última fotografia; e quando a onda de esposas dos bons burgueses se escoou pela escadaria de pedra, perdendo-se nas ruas húmidas onde os seus automóveis esperavam, descobri, no momento de deixar a sala, que para trás ficara uma estudante solitária das paixões e das artes. Estava sentada no fundo da sala, pensativa, de pernas cruzadas, numa atitude masculina, fumando um cigarro. Não olhava para mim, mas fixava o soalho em frente dos seus pés com um ar vulgar. Senti-me lisonjeado, pensando que pelo menos uma pessoa tinha compreendido as minhas dificuldades. Peguei na gabardina e na pasta húmida e lancei-me para as ruas varridas por uma chuvinha fina e penetrante que o vento do litoral fustigava. Tomei o caminho de casa onde Melissa a essa hora teria posto a mesa, coberta com uma folha de jornal, depois de ter mandado Hamid buscar o assado ao padeiro, porque não tínhamos forno». In Lawrence Durrell, Quarteto de Alexandria, 1957, Justine, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.

Cortesia de PdQuixote/JDACT