segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Os Teatros de Lisboa. 1874. Júlio C. Machado. «… bastando uma piroeta para torcer uma linha, seja uma linha torcida o sufficiente para deixar sem fortuna, sem destino, e sem pão um ente infeliz, que teve a sorte de pôr o seu talento nas pontas dos pés?!»

Bordalo Pinheiro jdact

De acordo com o original

D. Maria
«(…) Epiphaneo vivia em companhia de dois filhos: a febre entrou n’essa casa e com ella a morte; o filho mais novo succumbiu á doença. Então aquelle coração de artista que era um grande coração de pae, sentiu-se ferido do mesmo golpe. Passara as noites ao pé do leito do doente, e, dias depois da morte de seu filho, o grande actor caiu também ao sopro pestífero do mesmo mal que lho roubara. A impressão que aquella morte lhe produzira havia sido profunda e irremediável; não sei bem se foi a febre amarella, se a falta do filho, o que o matou!... De quantos artistas ensinou na sua longa carreira de mestre de theatro, a primeira, a única que chegou realmente a attingir proporções notáveis, foi Josepha, Soller. A infeliz Soller! Os elementos pareceram sempre ora querer, ora não querer que ella fosse actriz! Declamára aos três annos n’um theatro, de que era empresário o seu pae: volvêra á scena aos cinco annos, e a intelligencia precoce que revelava era a melhor garantia do talento dramatico, que, com o tempo e o estudo, poderia dar ao seu nome, um dia, a aureola dos triumphos. Todavia um gosto natural pela dança arredou  por muito tempo da arte dramática esta creatura, que invejava, talvez, o prestigio, a elegância, a graça voluptuosa das dançarinas, creaturas excepcionaes que os rapazes applaudem sempre com maior capricho, e maior enthusiasmo.
Realmente, dou razão em parte á Soller! As dançarinas, quando teem a fortuna de não brilharem apenas pela arte, mas também pela belleza, e que deixam campo ás primeiras illusões da vida para acceitar n’ellas a incarnação de um sonho, qualquer coisa de sublime, e desligado das existências terrestres, entes maravilhosos que se elevam sobre o pó, como o atomo se ergue e se perde na atmosphera fluctuante, impellido pelo calor das manhãs do estio..., são verdadeiras creações de poeta, que incendeiam a imaginação e a alma! Por mais que se teimasse e insistisse, por maiores, mais activas e constantes diligencias, que a familia empregasse, para que a Soller n’um paiz tão escasso de actrizes preferisse a carreira dramática, que não devia apenas ser-lhe mais lucrativa, porém mais brilhante, a obstinada creança proseguia no seu intento, e porfiava em seguir, como dizem os choreographos, questa philosofica arte della danza! Uma desgraça, porém, tinha de cortar-lhe a carreira. A pobre dançarina, encontrou-se subitamente impossibilitada de proseguir na sua mania! Uma extenção nervosa, na perna esquerda, resistiu a todos os esforços da medicina, e obrigou-a a afastar dos horisontes do tacté e do balloné as suas aspirações e as suas tendências!
Desgraçadas dançarinas, a quem não é preciso mais do que pôr um pé em falso, para verem a sua carreira cortada, tornar-se infructifero todo o estudo dos primeiros annos, e cahirem por terra, luctuosos, humildes, desenganados, os sonhos de prosperidade e de gloria que lhes haviam dado coragem de trabalhar! Pois que! o nome, a gloria, o futuro de uma creatura, cujo merecimento parecia assegurar-lhe os destinos da illustração e da celebridade, estão por tal forma escravos e dependentes da felicidade de um battement, que, bastando uma piroeta para torcer uma linha, seja uma linha torcida o sufficiente para deixar sem fortuna, sem destino, e sem pão um ente infeliz, que teve a sorte de pôr o seu talento nas pontas dos pés?! Não houve remédio.
Quando a rapariga viu que estava de perninha para todo o sempre, deixou-se de médicos e mandou chamar dilletanti. Acudiram os janotas do tempo, os grandes práticos das fortunas e dos revezes de theatro. Que hei-de fazer? perguntou ella. Vae ser actriz! disse Álvaro. Vae ser trágica! disse-lhe José Vaz. Vae-te ás soubrettes! aconselhou João Menezes. Vae ás ingénuas! disse o marquez de Niza. Depois, todos elles, em alto diagnostico, lhe predisseram: Serás grande! Trata d’isso. Custou-lhe ao principio. A fatalidade que a opprimia foi-lhe tanto mais penosa, que estava para partir para Vienna d’Áustria na companhia de Mabille, que quatro annos depois deu ordem expressa á irmã de madame Santy de a escripturar se já estivesse restabelecida; a esse tempo, porem, a Soller… estava actriz. Actriz! Existência de sensações e gloria, a que ella não aspirava, que não pedia, com que não sympathisava até! Singular destino, que a forçou a valer-se do talento, a reconhecel-o, a educal’o, a deixar que o publico a admirasse e applaudisse! Comediante como sua mãe, a Vasquez Corunha, como seu pae José Soller, Valença, que tomou o nome de Navarro, porque, fugindo á familia para seguir a vida de actor, quiz crear elle o seu nome para a gloria ou opprobrio que lhe coubesse! Oh! ella tinha de ser actriz; e debalde o seu capricho, por louca phantasia de creança, tentava talvez suffocar a vehemencia de uma vocação, que a natureza ou o destino tornaria um dia invencivel e irreconciliável!» In Júlio César Machado, Os Teatros de Lisboa, Ilustrações de Bordalo Pinheiro, Livraria Editora Mattos Moreira, 1874, PN 2796 L5M25, Library Mar 1968, University of Toronto.


Cortesia de LEMMoreira/1874/Bordalo Pinheiro/JDACT