terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Inês de Castro. Da Tragédia ao Melodrama. Nair de Nazaré Soares. «... Fuge, coitada, fuge, que já soam as duras ferraduras, que te trazem correndo a morte triste. Gente armada correndo vem, Senhora, em busca tua...»


Cortesia de wikipedia

Inês de Castro: da tragédia ao melodrama
«(…) As isotopias da luminosidade, constantes na dialéctica amorosa do código petrarquista, que acompanham a análise psicológica, a alegria e a felicidade que o amor propiciava, no acto I, dão agora lugar, no diálogo da Castro com a Ama, às visões
escuras e medonhas. Estas são traduzidas em lexemas que se repetem, com fórmulas derivativas, verdadeiros monocórdios, a envolver a área semântica de saudade, reiterações de vocábulos, carregados de sentimentalismo, escuro, triste, tristeza; entristecer, grito, choro, chorar, lágrimas. Na cena II do Acto III, mantêm-se as mesmas personagens e intervém o coro, até agora calado. Este, pela voz do corifeu, assume o valor de um verdadeiro coro de tragédia clássica, numa atitude comovida e lamentosa perante a sorte da protagonista. O diálogo que se trava apenas entre a heroína e o coro, no passo em que este lhe anuncia a morte, traduz admiravelmente a tensão dramática, que dá a cada verso o tom incisivo ou o recorte lamentoso de um suspiro ou de um grito de alma. A réplica da Castro ao Coro, que num simples hemistíquio, É tua morte, lhe anuncia o destino trágico, é o verso de maior dimensão poética e sentido mais pregnante de toda a peça, É morto o meu Senhor? O meu Ifante?:

Coro
Tristes novas, cruéis,
Novas mortais te trago, Dona Inês.
Ah, coitada de ti, ah, triste, triste,
Que não mereces tu a cruel morte
Que assim te vem buscar!
[…]
Castro
Triste de mim, triste! Que mal, que mal tamanho
é esse que me trazes?
Coro
É tua morte.
Castro
É morto o meu senhor, o meu Ifante?
Coro
Ambos morrereis cedo.
Castro
Ó novas tristes!
Matam-me o meu amor? Porque mo matam?
Coro
Porque te matarão: por ti só vive,
Por ti morrerá logo.

Perturbado e preocupado com a sorte da Castro, o Coro aconselha-a a fugir:

...Fuge, coitada, fuge, que já soam
As duras ferraduras, que te trazem
Correndo a morte triste. Gente armada
Correndo vem, Senhora, em busca tua...

O vocalismo fechado das semivogais, as vogais nasais, as aliterações da vibrante, a expressividade repetitiva de formas verbais, a marcar a cesura, ou em posição anafórica, corroboram o valor semântico da mensagem e sugerem o ritmo que se apressa, que transmite o fragor da cavalgada, a aproximar-se com a Morte e o Rei que a personifica, corroborado na antístrofe da ode coral, que termina o acto. O Coro final do acto III, nos ritmos métricos usados já no canto anterior, estrofe sáfica, o primeiro, e verso hexassilábico, o segundo, entoa primeiramente o tema da brevidade da vida e aconselha a mocidade cega a aproveitar o tempo, que só boa fama, só virtude casta/ pode mais que ele. Na antístrofe, encarece a beleza de Inês e lamenta a sua sorte; censura o Infante, a sua ausência determina a catástrofe, que dorme ou passeia, enquanto a cruel morte se apressa; apostrofa o Príncipe, para que se apresse, e a Morte, para que se detenha.
Mesmo que se considere que só há verdadeiramente acontecer dramático na alma da protagonista, a solidão da heroína, a ausência do amado, a saudade, o tempo avaro e por fim o anúncio da morte dão forma e densidade trágica a este episódio. O acto IV, onde se dá a catástrofe, radica em fontes literárias e históricas e traduz o confronto entre a protagonista e os seus algozes, na presença do Coro, que actua como personagem. Na cena I, a presença da Castro é dominante, não só no número e extensão das intervenções, mas sobretudo na intensidade dramático-emocional do discurso. A infeliz vai pedir misericórdia e recorre em primeiro lugar ao coro, ...amigas minhas, ajudai-me a pedir misericórdia. Dirige-se em seguida aos filhos, qual Medeia ou Alceste, para lhes apresentar o avô, é que o parentesco ampliava a emoção, e, em expressivo oximoro, pede-lhes para a defenderem com a linguagem do silêncio:

Eles falem por mim, eles só ouve:
mas não te falarão, Senhor, com língua,
que inda não podem; falam-te co as almas

É ainda como mãe que primeiramente se dirige ao Rei:

Meu Senhor,
esta é a mãe de teus netos. Estes são
filhos daquele filho que tanto amas

É a mulher frágil:
Esta é aquela coitada mulher fraca,
contra quem vens armado de crueza

Na sua inocência confiada, não foge, apesar de todo este estrondo /d’armas e cavaleiros. E prossegue:

Mais contra imigos vens, que cruelmente
t’andassem tuas terras destruindo,
a ferro e fogo.

Esta oposição vigorosa entre a fragilidade e a força, entre a vítima e o detentor do poder de salvar ou condenar, é marcado pelo emprego reiterado de formas pronominais, pessoais ou possessivas, em que a primeira pessoa do singular contrasta com a segunda. Dignos de nota são, neste sentido, o versos seguintes:

...Eu tremo, Senhor, tremo
de me ver ante ti, como me vejo,
mulher, moça, inocente, serva tua.

A repetição expressiva da forma verbal tremo, no presente, separada pela palavra Senhor, em vocativo, a que se sucedem me ver e me vejo, divididas por ante ti, criam o sentido visual de presença, de absoluta dependência. Esta é corroborada, no verso final, pela acumulação gradativa, em assíndeto, de adjectivos de uma pregnância significativa capaz de resumir toda a intriga. Nesta gradação ascendente não falta mesmo a anástrofe do possessivo em serva tua: a marcar a situação de dependência, a solidão da heroína. O seu destino trágico. Decorridas cinco falas entre o Rei e a Castro, Pacheco corta o ritmo ao discurso para advertir, num simples hemistíquio, que o tempo não dá tréguas: Foge o tempo. O curso da argumentação volta-se agora para a problemática da culpa. Entram no diálogo os Conselheiros, a quem Inês acusa de não cumprirem com os seus deveres de cavaleiros. A acção ganha densidade e avolumam-se os motivos trágicos, a prepararem o pathos: à afirmação instante da urgência do tempo unem-se, à maneira clássica, a reiteração da culpa e o jugo da necessidade que as intervenções de Coelho veiculam. Enfim o sacrifício da heroína era necessário. Criam-se então os ingredientes indispensáveis à teatralização do motivo euripidiano do sacrifício voluntário». In Nair Nazaré Castro Soares, Inês de Castro, Da Tragédia ao Melodrama, Universidade de Coimbra, As Artes de Prometeu, homenagem a Ana Paula Quintela, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.

Cortesia da FLUPorto/JDACT