Inês de Castro: da tragédia ao melodrama
«(…) As isotopias da luminosidade, constantes na dialéctica amorosa do
código petrarquista, que acompanham a análise psicológica, a alegria e a
felicidade que o amor propiciava, no acto I, dão agora lugar, no diálogo da
Castro com a Ama, às visões
escuras e medonhas. Estas são traduzidas em lexemas que se
repetem, com fórmulas derivativas, verdadeiros monocórdios, a envolver a área
semântica de saudade, reiterações de vocábulos, carregados de
sentimentalismo, escuro, triste, tristeza; entristecer,
grito, choro, chorar, lágrimas. Na cena II do Acto
III, mantêm-se as mesmas personagens e intervém o coro, até agora calado. Este,
pela voz do corifeu, assume o valor de um verdadeiro coro de tragédia clássica,
numa atitude comovida e lamentosa perante a sorte da protagonista. O diálogo
que se trava apenas entre a heroína e o coro, no passo em que este lhe anuncia
a morte, traduz admiravelmente a tensão dramática, que dá a cada verso o tom
incisivo ou o recorte lamentoso de um suspiro ou de um grito de alma. A réplica
da Castro ao Coro, que num simples hemistíquio, É tua morte, lhe anuncia
o destino trágico, é o verso de maior dimensão poética e sentido mais pregnante
de toda a peça, É morto o meu Senhor? O meu Ifante?:
Coro
Tristes novas, cruéis,
Novas mortais te trago, Dona Inês.
Ah, coitada de ti, ah, triste, triste,
Que não mereces tu a cruel morte
Que assim te vem buscar!
[…]
Castro
Triste de mim, triste! Que mal, que mal tamanho
é esse que me trazes?
Coro
É tua morte.
Castro
É morto o meu senhor, o meu Ifante?
Coro
Ambos morrereis cedo.
Castro
Ó novas tristes!
Matam-me o meu amor? Porque mo matam?
Coro
Porque te matarão: por ti
só vive,
Por ti morrerá logo.
Perturbado e preocupado
com a sorte da Castro, o Coro aconselha-a a fugir:
...Fuge, coitada, fuge,
que já soam
As duras ferraduras, que
te trazem
Correndo a morte triste.
Gente armada
Correndo vem, Senhora, em busca tua...
O vocalismo fechado das
semivogais, as vogais nasais, as aliterações da vibrante, a expressividade
repetitiva de formas verbais, a marcar a cesura, ou em posição anafórica, corroboram
o valor semântico da mensagem e sugerem o ritmo que se apressa, que transmite o
fragor da cavalgada, a aproximar-se com a Morte e o Rei que a personifica, corroborado
na antístrofe da ode coral, que termina o acto. O Coro final do acto III, nos
ritmos métricos usados já no canto anterior, estrofe sáfica, o primeiro, e
verso hexassilábico, o segundo, entoa primeiramente o tema da brevidade da vida
e aconselha a mocidade cega a aproveitar o tempo, que só boa fama, só
virtude casta/ pode mais que ele. Na antístrofe, encarece a beleza de Inês e
lamenta a sua sorte; censura o Infante, a sua ausência determina a catástrofe,
que dorme ou passeia, enquanto a cruel morte se apressa; apostrofa o Príncipe,
para que se apresse, e a Morte, para que se detenha.
Mesmo que se considere
que só há verdadeiramente acontecer dramático na alma da protagonista, a
solidão da heroína, a ausência do amado, a saudade, o tempo avaro e por fim o
anúncio da morte dão forma e densidade trágica a este episódio. O acto IV, onde
se dá a catástrofe, radica em fontes literárias e históricas e traduz o
confronto entre a protagonista e os seus algozes, na presença do Coro, que
actua como personagem. Na cena I, a presença da Castro é dominante, não só no
número e extensão das intervenções, mas sobretudo na intensidade
dramático-emocional do discurso. A infeliz vai pedir misericórdia e recorre em
primeiro lugar ao coro, ...amigas minhas, ajudai-me a pedir misericórdia.
Dirige-se em seguida aos filhos, qual Medeia ou Alceste, para lhes apresentar o
avô, é que o parentesco ampliava a emoção, e, em expressivo oximoro, pede-lhes
para a defenderem com a linguagem do silêncio:
Eles falem por mim, eles
só ouve:
mas não te falarão,
Senhor, com língua,
que inda não podem;
falam-te co as almas
É ainda como mãe que
primeiramente se dirige ao Rei:
Meu Senhor,
esta é a mãe de teus
netos. Estes são
filhos daquele filho que
tanto amas
É a mulher frágil:
Esta é aquela coitada
mulher fraca,
contra quem vens armado
de crueza
Na sua inocência
confiada, não foge, apesar de todo este estrondo /d’armas e cavaleiros. E
prossegue:
Mais contra imigos vens,
que cruelmente
t’andassem tuas terras
destruindo,
a ferro e fogo.
Esta oposição vigorosa
entre a fragilidade e a força, entre a vítima e o detentor do poder de salvar
ou condenar, é marcado pelo emprego reiterado de formas pronominais, pessoais
ou possessivas, em que a primeira pessoa do singular contrasta com a segunda.
Dignos de nota são, neste sentido, o versos seguintes:
...Eu tremo, Senhor,
tremo
de me ver ante ti, como
me vejo,
mulher, moça, inocente, serva tua.
A repetição expressiva
da forma verbal tremo, no presente, separada pela palavra Senhor,
em vocativo, a que se sucedem me ver e me vejo, divididas por ante
ti, criam o sentido visual de presença, de absoluta dependência. Esta é
corroborada, no verso final, pela acumulação gradativa, em assíndeto, de
adjectivos de uma pregnância significativa capaz de resumir toda a intriga.
Nesta gradação ascendente não falta mesmo a anástrofe do possessivo em serva
tua: a marcar a situação de dependência, a solidão da heroína. O seu
destino trágico. Decorridas cinco falas entre o Rei e a Castro, Pacheco corta o
ritmo ao discurso para advertir, num simples hemistíquio, que o tempo não dá
tréguas: Foge o tempo. O curso da argumentação volta-se agora para a problemática
da culpa. Entram no diálogo os Conselheiros, a quem Inês acusa de não cumprirem
com os seus deveres de cavaleiros. A acção ganha densidade e avolumam-se os
motivos trágicos, a prepararem o pathos: à afirmação instante da urgência
do tempo unem-se, à maneira clássica, a reiteração da culpa e o jugo da
necessidade que as intervenções de Coelho veiculam. Enfim o sacrifício da
heroína era necessário. Criam-se então os ingredientes indispensáveis à teatralização
do motivo euripidiano do sacrifício voluntário». In Nair Nazaré Castro Soares,
Inês de Castro, Da Tragédia ao Melodrama, Universidade de Coimbra, As Artes de
Prometeu, homenagem a Ana Paula Quintela,
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.
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