sábado, 12 de dezembro de 2015

Quarteto de Alexandria. Balthasar. Lawrence Durrell. «Visão emocionante para um exilado como eu, recluso no espírito como todos os escritores, uma espécie de veleiro dentro de uma garrafa navegando para parte nenhuma…»

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«(…) O pequeno caramanchão de loureiros, debaixo dos plátanos, eis o meu gabinete de trabalho. Depois da criança ir para a cama, sentava-me aqui, à velha mesa carcomida pela maresia, à espera do visitante, sem acender a lâmpada de parafina enquanto ele não passava. Era o único dia da semana cujo nome eu aqui conhecia, quinta-feira. Pode parecer uma tolice, mas numa ilha tão desprovida de atracções, esperava aquela visita semanal como uma criança espera um feriado escolar. Sabia que o barco trazia cartas mas teria que aguardar um dia inteiro pelo correio. Mas nunca via o pequeno vaporzinho desaparecer sem um sentimento de melancolia. E depois de desaparecer acendia a lâmpada com um suspiro e voltava aos meus papéis. Escrevo devagar e penosamente. Pursewarden, falando uma vez sobre a arte de escrever, confiou-me que a dor que acompanha geralmente essa tarefa se deve ao receio que o artista tem de enlouquecer; avance sem medo e diga a si próprio que não se lhe dá ficar doido e verá como tudo se torna mais fácil. (Ignoro que dose de verdade existe nessas palavras, mas o legado em dinheiro que me deixou tem-me sido útil, e ainda restam algumas libras, entre mim e os demónios das dívidas e do trabalho). Descrevo esta diversão semanal com certa riqueza de pormenores porque foi justamente neste quadro que Baltasar, numa noite de Junho, me apareceu de uma forma tão inesperada que me surpreendeu, eu ia escrever aturdiu, não há aqui ninguém com quem falar, mas me surpreender. Nessa noite sucedeu uma espécie de milagre. O vaporzinho, em vez de desaparecer como de costume, descreveu abruptamente um arco de cento e cinquenta graus e entrou na enseada onde se imobilizou no casulo aveludado das suas luzes para lançar no charco dourado que ele próprio criara, a longa e lenta corrente da âncora que é como o próprio símbolo da busca da verdade. Visão emocionante para um exilado como eu, recluso no espírito como todos os escritores, uma espécie de veleiro dentro de uma garrafa navegando para parte nenhuma, e fiquei a observar a manobra como talvez outrora um índio observou a chegada às praias do Novo Mundo da primeira nau branca.
A escuridão, o silêncio, eram agora quebrados pelo chape-chape irregular dos remos; e depois, decorrido muito tempo, pelo martelar de solas citadinas sobre os calhaus. Uma voz rouca indicou o caminho. Silêncio. Enquanto acendia a lâmpada e regulava a mecha tentando libertar-me do encantamento em que me lançara esta quebra de normalidade, a face grave e sombria do meu amigo, tal como a aparição de um fauno dos Infernos, materializou-se entre os grossos ramos dos mirtos. Ficámos com a respiração suspensa a olhar um para o outro, sorridentes, na luz amarelada da candeia: a severa cabeleira anelada de Assírio, a barba de Pã. Não, homem..., sou autêntico!, exclamou Baltasar com uma gargalhada, e abraçámo-nos furiosamente. Balthasar! O Mediterrâneo é um mar absurdamente pequeno; as dimensões da sua história fazem-nos pensar ilusoriamente que se trata de um vasto mar, o que na realidade não sucede. Alexandria, a verdadeira e a imaginária, não dista mais de algumas milhas marítimas para o sul.
Ia a caminho de Esmirna, disse Balthasar, de onde tencionava remeter-lhe isto. Depositou sobre a velha mesa martirizada o enorme maço manuscrito que eu lhe tinha enviado, um imenso volume de folhas amarrotadas, sobrecarregadas de frases e de parágrafos inteiros entre as linhas e consteladas de interrogações. Sentando-se à minha frente com o seu ar mefistofélico, disse num tom mais baixo, hesitante: Debati comigo próprio durante muito tempo se devia falar-lhe em certas coisas que anotei no seu manuscrito. Às vezes parece-me uma loucura e uma impertinência tê-lo feito. Afinal de contas interessávamos-lhe como pessoas ou como personagens? Ignorava-o. E ainda ignoro. Estas páginas podem fazer-me perder a sua amizade sem acrescentarem nada ao seu conhecimento. Pintou a cidade, pincelada após pincelada, sobre uma superfície curva, mas qual era o seu objecto, a poesia ou os factos? Se eram os factos então há coisas que deve saber. Ainda não tinha explicado aquela sua surpreendente aparição, tão ansioso se mostrava por tratar do motivo principal da sua visita. Mas, notando a minha surpresa diante da nuvem de pirilampos que flutuava na baía, sorriu: O navio parou devido a uma avaria nas máquinas. Levará algumas horas a consertar. É da frota de Nessim. O capitão é Hasim Kohly, um velho amigo: talvez se lembre dele? Não? Bem, pela sua descrição calculei mais ou menos onde você vivia; mas ser desembarcado à sua porta, isso é que, com franqueza...!» In Lawrence Durrell, Quarteto de Alexandria, 1958, Balthazar, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT