«(…)
O pequeno caramanchão de loureiros, debaixo dos plátanos, eis o meu gabinete de
trabalho. Depois da criança ir para a cama, sentava-me aqui, à velha mesa
carcomida pela maresia, à espera do visitante, sem acender a lâmpada de
parafina enquanto ele não passava. Era o único dia da semana cujo nome eu aqui
conhecia, quinta-feira. Pode parecer uma tolice, mas numa ilha tão desprovida
de atracções, esperava aquela visita semanal como uma criança espera um feriado
escolar. Sabia que o barco trazia cartas mas teria que aguardar um dia inteiro
pelo correio. Mas nunca via o pequeno vaporzinho desaparecer sem um sentimento
de melancolia. E depois de desaparecer acendia a lâmpada com um suspiro e
voltava aos meus papéis. Escrevo devagar e penosamente. Pursewarden, falando
uma vez sobre a arte de escrever, confiou-me que a dor que acompanha geralmente
essa tarefa se deve ao receio que o artista tem de enlouquecer; avance sem medo e diga a si próprio que não
se lhe dá ficar doido e verá como tudo se torna mais fácil. (Ignoro que
dose de verdade existe nessas palavras, mas o legado em dinheiro que me deixou
tem-me sido útil, e ainda restam algumas libras, entre mim e os demónios das
dívidas e do trabalho). Descrevo esta diversão semanal com certa riqueza de
pormenores porque foi justamente neste quadro que Baltasar, numa noite de Junho,
me apareceu de uma forma tão inesperada que me surpreendeu, eu ia escrever
aturdiu, não há aqui ninguém com quem falar, mas me surpreender. Nessa noite
sucedeu uma espécie de milagre. O vaporzinho, em vez de desaparecer como de
costume, descreveu abruptamente um arco de cento e cinquenta graus e entrou na
enseada onde se imobilizou no casulo aveludado das suas luzes para lançar no
charco dourado que ele próprio criara, a longa e lenta corrente da âncora que é
como o próprio símbolo da busca da verdade. Visão emocionante para um exilado
como eu, recluso no espírito como todos os escritores, uma espécie de veleiro
dentro de uma garrafa navegando para parte nenhuma, e fiquei a observar a
manobra como talvez outrora um índio observou a chegada às praias do Novo Mundo
da primeira nau branca.
A
escuridão, o silêncio, eram agora quebrados pelo chape-chape irregular dos
remos; e depois, decorrido muito tempo, pelo martelar de solas citadinas sobre
os calhaus. Uma voz rouca indicou o caminho. Silêncio. Enquanto acendia a
lâmpada e regulava a mecha tentando libertar-me do encantamento em que me
lançara esta quebra de normalidade, a face grave e sombria do meu amigo, tal como
a aparição de um fauno dos Infernos, materializou-se entre os grossos ramos dos
mirtos. Ficámos com a respiração suspensa a olhar um para o outro, sorridentes,
na luz amarelada da candeia: a severa cabeleira anelada de Assírio, a barba de
Pã. Não, homem..., sou autêntico!, exclamou Baltasar com uma gargalhada, e
abraçámo-nos furiosamente. Balthasar! O Mediterrâneo é um mar absurdamente
pequeno; as dimensões da sua história fazem-nos pensar ilusoriamente que se
trata de um vasto mar, o que na realidade não sucede. Alexandria, a verdadeira
e a imaginária, não dista mais de algumas milhas marítimas para o sul.
Ia
a caminho de Esmirna, disse Balthasar, de onde tencionava remeter-lhe isto. Depositou
sobre a velha mesa martirizada o enorme maço manuscrito que eu lhe tinha
enviado, um imenso volume de folhas amarrotadas, sobrecarregadas de frases e de
parágrafos inteiros entre as linhas e consteladas de interrogações. Sentando-se
à minha frente com o seu ar mefistofélico, disse num tom mais baixo, hesitante:
Debati comigo próprio durante muito tempo se devia falar-lhe em certas coisas
que anotei no seu manuscrito. Às vezes parece-me uma loucura e uma
impertinência tê-lo feito. Afinal de contas interessávamos-lhe como pessoas ou
como personagens? Ignorava-o. E ainda ignoro. Estas páginas podem fazer-me
perder a sua amizade sem acrescentarem nada ao seu conhecimento. Pintou a
cidade, pincelada após pincelada, sobre uma superfície curva, mas qual era o
seu objecto, a poesia ou os factos? Se eram os factos então há coisas que deve
saber. Ainda não tinha explicado aquela sua surpreendente aparição, tão ansioso
se mostrava por tratar do motivo principal da sua visita. Mas, notando a minha
surpresa diante da nuvem de pirilampos que flutuava na baía, sorriu: O navio
parou devido a uma avaria nas máquinas. Levará algumas horas a consertar. É da
frota de Nessim. O capitão é Hasim Kohly, um velho amigo: talvez se lembre
dele? Não? Bem, pela sua descrição calculei mais ou menos onde você vivia; mas
ser desembarcado à sua porta, isso é que, com franqueza...!» In
Lawrence Durrell, Quarteto de Alexandria, 1958, Balthazar, tradução de Daniel
Gonçalves, 1960/1961, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.
Cortesia
de PdomQuixote/JDACT