quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

A Rosa de Sebastopol. Katharine Mc Mahon. «Como o meu cabelo ficara preso debaixo da cabeça dele, eu via apenas uma parte do tecto rachado, um friso interrompido e a cortina azul-acinzentada a ondular. Beijei-o vezes sem conta…»

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Itália. 1855
«(…) Henry estava deitado na cama, mas apoiou-se num cotovelo e, mesmo na escuridão, vi que havia um brilho ansioso no seu olhar e que o seu cabelo crescera tanto que lhe cobria a testa. Ficámos a olhar um para o outro. Depois, atravessei o quarto como pude, ajoelhei-me ao lado da cama e abracei-o. A minha touca escorregou para o lado quando ele me cobriu a face de beijos ardentes. Chorei e pareceu-me que voava ao sentir a boca dele no meu cabelo, na orelha e no pescoço. Apesar de me aperceber vagamente de que a porta atrás de nós se fechou de repente e de que tínhamos sido observados, não me importei. Agarrei-me aos seus braços escanzelados, enquanto as mãos dele me acariciavam as costas, e ajudei-o a desapertar as fitas da minha touca, pensando como podia eu ter duvidado sequer de que tomara a decisão certa ao apresentar-me ali. Compreendi que havia esperado durante a maior parte da minha vida que Henry me beijasse o pescoço, e até que eu o deixasse desabotoar-me atabalhoadamente o vestido e soltar-me o peitilho da camisa. A minha pele contraiu-se quando a boca dele se fechou sobre o meu seio. A sua respiração, ofegante e rouca, alternava com beijos. Deixei-me cair na almofada, acariciei-lhe o cabelo e senti-o cada vez mais pesado nos meus braços. Surpreendida, vi que tinha adormecido. Talvez durante meia hora, não me mexi, embora só metade do meu corpo estivesse apoiada na cama, a touca me caísse do pescoço e uma brisa agitasse a cortina, ao som dos cascos de uma mula que passava na rua. Como o meu cabelo ficara preso debaixo da cabeça dele, eu via apenas uma parte do tecto rachado, um friso interrompido e a cortina azul-acinzentada a ondular. Beijei-o vezes sem conta, dei-lhe beijos pequenos e suaves no cabelo, que era muito mais macio do que eu tinha imaginado, como o pêlo de um gato, e pensei: … ele tem passado todas estas semanas sozinho, a olhar para aquela cortina e à minha espera. Senti-me a flutuar no milagre do seu contacto, senti a novidade de um corpo masculino que quase cobria o meu, o facto de este ser o Henry cuja ausência me custara tanto nos últimos meses que até o sangue nas minhas veias suspirava por ele.
Depois, estreitei o meu abraço porque, mesmo nos meus devaneios mais extravagantes, nunca esperara uma recepção tão apaixonada e carente como esta, nem pensara que iria encontrá-lo tão fraco ao ponto de estar confinado ao leito. Sempre apreciara a sua energia e a firmeza do seu braço debaixo da minha mão, mas agora ele estava frágil como um pássaro. E exalava um cheiro completamente diferente do Henry que me deliciava sempre com o perfume de um bom sabonete, de um bálsamo ou da cânfora. Mas o odor da carne aprisionada fez-me lembrar o lar das preceptoras. Assim que ele acordou, senti a sua respiração irregular no meu pescoço. Quando mexeu a cabeça, a minha pele estava húmida e quente no sítio em que ele encostara a face. Fechei os olhos no momento em que o meu seio endureceu devido ao movimento circular da ponta do seu dedo. Isto é Itália, ninguém virá a saber. E, afinal, o que me importa?, pensei.
Meu querido amor, sussurrou ele. Julguei que nunca virias. O seu dedo descrevia uma espiral cada vez mais estreita no meu mamilo, e as palavras saíram-me, desconexas: eu não sabia ao certo se me querias aqui. E, no entanto, nada me impediria, nem mesmo tu, por isso pensei que seria preferível vir sem te avisar. És o meu amor, o meu amor. Nas tuas cartas, parecias tão só que achei que tinha de vir ao teu encontro. Henry aninhou-se no meu peito e encostou a face ao meu pescoço, puxando-me cada vez mais para debaixo dele. Não me importei de sentir o odor da febre no seu hálito; quase não tinha consciência de nada, excepto do seu desejo, quando ele murmurou: julguei que nunca mais voltaria a ver-te. Julguei que havias partido. É claro que voltarias a ver-me. Mas nunca me respondeste. Nunca disseste uma palavra. Isso estava a matar-me. Henry pousou a cabeça ao lado da minha, na almofada, e virou a minha cara para a sua. Tive ocasião de reparar como estava pálido e que, como havia rapado o bigode, os seus lábios eram cheios e pueris como da primeira vez em que o vira. Depois, ele disse: deixa-me olhar para ti, finalmente. Minha Rosa. Meu querido amor. Minha querida Rosa.

Londres. 1840
Euphemia, a mãe de Henry, a quem chamavam pobre Tia Eppie, era prima do meu pai. Depois de se casar com Richard Thewell, um estalajadeiro de Derbyshire, o casal mudou-se para o Sul e durante alguns anos administrou uma hospedaria próspera nos arredores de Radlett, em HertÍordshire. A sua história trágica posterior só era comentada à porta fechada e por isso fui obrigada a reconstituí-la aos bocadinhos. Thewell, que não teve a astúcia suficiente para prever que a nova linha do caminho-de-ferro que atravessava a cidade lhe arruinaria o negócio, entregou-se à bebida. Entretanto, pouco depois do nascimento do filho único de ambos, a Tia Eppie começou a sofrer de uma doença que a consumia. O negócio fracassou e o meu pai salvou a família transferindo-a para uma das pequenas vivendas que acabara de construir em Wandsworth, a cerca de dois quilómetros da nossa casa, em Clapham». In Katharine Mc Mahon, A Rosa de Sebastopol, 2007, tradução de Filomena Duarte, Casa das Letras, 2010, ISBN 978-972-461-938-5.

Cortesia de CdasLetras/JDACT