terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. «Que dor? Não sei. Quem sabe saber o que sente? Nem um gesto. Sobreviva apenas ao que tem que morrer o luar e a hora e o vago perfume indolente e as palavras por dizer»

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Scheherazad
«O mundo rui a meu redor, escombro a escombro
Os meus sentidos oscilam, bandeira rota ao vento.
Que sombra de que o sol enche de frio e de assombro
a estrada vazia do conseguimento?

Busca um porto longe uma nau desconhecida
e esse é todo o sentido da minha vida.

Por um mar azul nocturno, estrelado no fundo,
segue a sua rota a nau o

Mas o sentido de tudo está fechado no pasmo
que exala a chama negra que acende em meu entusiasmo

súbitas confissões de outro que eu fui outrora
antes da vida e viu Deus e eu não o sou agora».
(10-2-1917)


L’Homme
«Não: toda a palavra é a mais. Sossega!
Deixa, da tua voz, só o silêncio anterior!
Como um mar vago a uma praia deserta, chega
ao meu coração a dor.

Que dor? Não sei. Quem sabe saber o que sente?
Nem um gesto. Sobreviva apenas ao que tem que morrer
o luar e a hora e o vago perfume indolente
e as palavras por dizer».
(12-6-1918)

«Porque vivo, quem sou, o que sou, quem me leva?
Que serei para a morte? Para a vida o que sou?
A morte no mundo é a treva na terra.
Nada posso. Choro, gemo, cerro os olhos e vou.
Cerca-me o mistério, a ilusão e a descrença
da possibilidade de ser tudo real.
Ó meu pavor de ser, nada há que te vença!
A vida como a morte é o mesmo Mal!»
(5-3-1919)

In Fernando Pessoa, Novas Poesias Inéditas, Colecção Poesia, Editorial Nova Ática, Lisboa, 2006, ISBN 972-617-178-4.

Cortesia de NÁtica/JDACT