quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Os Mistérios de Maria Antónia (I). Valdemar Cruz. «… terem sido os anos finais de Totó ‘muito dramáticos’. Após o nascimento da filha, Joana, ‘desenvolveu uma neurose pós-parto, que acontece muitas vezes, mas no caso dela teve uma evolução má. Tinha períodos de estar muito bem e, depois, entrava numa depressão grande’. Por tudo isso, acrescentava, ‘é muito difícil e pode ser um choque grande’».

Cortesia de Expresso e jdact

Com a devida vénia a Valdemar Cruz e ao Semanário Expresso

«Desenhava como ninguém e morreu aos 32 anos nos braços de Álvaro Siza. O arquiteto assumiu uma viuvez eterna, com as causas da morte a alimentarem especulações. O Expresso conta pela primeira vez a história da mulher cuja obra chega agora à Gulbenkian». In texto de Valdemar Cruz

«No final daquela madrugada amanhece a eternidade de uma dor indizível. Numa cama, uma mulher. Um rosto ausente. Um olhar vazio. Na mesma cama, um homem. O sobressalto do despertar. O olhar perplexo. O alvoroço do inesperado. Ela, prostrada. Pela face escorre-lhe um débil fio púrpura. Já não é deste mundo. Ele, petrificado. Já o mundo se lhe desmorona. Ainda lhe pressente um último suspiro. Tenta agarrar as frágeis réstias de esperança. É tarde. É o fim. São os gritos abafados. É o adeus absoluto aos sorrisos, às graças, às poses arrebatadas, aos esmorecimentos, aos dramas do quotidiano, aos dias de criação febril, aos geniais desenhos de um mundo outro criados por Maria Antónia Siza. Tem 32 anos. Morre às 6h30 da manhã do dia 11 de janeiro de 1973. Álvaro Siza Vieira segura-a naqueles instantes finais. É o horror. É a desmesura da mágoa. É tarde. É infinitamente tarde. São passados 43 anos desde aquela manhã cravada na memória de quantos tiveram a oportunidade de conviver com a singular personalidade de Totó, como lhe chamavam os mais chegados. Há todo um oceano de tempo, de acontecimentos, de vivências a separar aquele dia final de quem hoje a recorda. Há todo um mundo de silêncios, de não ditos, ao longo dos anos construídos à volta das circunstâncias de morte de uma mulher capaz de irromper numa sala como um furacão. Não deixava ninguém indiferente. Podia, até, ser inconveniente. Podia criar embaraços. Não podia jamais deixar de ser a personificação de um estranho sentido de liberdade numa época marcada por medos. Havia em Maria Antónia um invejável lado solar capaz de contagiar de alegria quem com ela compartilhava vivências. Se estava bem, desenhava a um ritmo quase febril. Cada desenho nascia de um risco só. De um único movimento. Sem estudos prévios. Sem rasuras. Com uma rara noção e um inusitado controlo da imagem. Desenhava contra todas as regras estabelecidas pela ortodoxia. Desenhava como ninguém. O reverso plasmava-se nos momentos de ausência. Afundava-se no lado escuro da lua. Uma fronteira difícil de perceber e acompanhar. Desistia do desenho. Desistia da alegria. Parecia desistir dos outros. A morte inesperada de uma mulher jovem, a abarrotar de talento, conhecida pela sua beleza, atormentada por algumas patologias, também do foro psicológico, na sequência de um trauma pós-parto, depressa se transforma em campo fértil para o nascimento de um mito urbano ainda hoje não desfeito. Aos olhos de importantes franjas de amigos e conhecidos, Maria Antónia ter-se-ia suicidado. A pergunta, sussurrada, às vezes colocada com um misto de timidez e curiosidade própria da devassa, desabava a cada instante nas múltiplas conversas necessárias à concretização desta viagem aos percursos e aos mistérios de uma mulher perdida na circunstância de, afinal, ter nascido antes de tempo. Com 40 anos à data da morte da mulher, Álvaro Siza assume uma viuvez eterna, nas palavras de um dos grandes amigos do casal, Carlos Morais, um ex-engenheiro civil do LNEC, agora psicoterapeuta psicoanalítico com consultório no Chiado, em Lisboa. A força anímica, afetiva e emocional da Totó era tão grande, que ele a acha irrepetível, revela. Falar de Maria Antónia torna-se uma espécie de interdito e Siza projeta a imagem de um homem só, atingido por um sofrimento indizível. Não por acaso, passam anos desde o primeiro momento em que lhe sugerimos a ideia deste trabalho, de modo a proporcionar a divulgação de uma obra no essencial desconhecida. Apesar de ter deixado mais de mil desenhos e uns tantos quadros a óleo, em vida expôs uma única vez, em 1970, na Árvore. Em novembro de 2002, um conjunto de acasos proporcionou uma segunda mostra dos seus desenhos na cooperativa portuense, de seguida apresentados no Círculo de Belas Artes, em Madrid. Depois, e de novo, o silêncio. Há pelo menos uma explicação. Se o abordávamos e o tema passava por Maria Antónia, Álvaro Siza não conseguia deixar de expressar o quanto lhe seria doloroso, bem como para os filhos, regressar a estas memórias. É prematuro, insistia. Até por ser impossível falar da obra sem falar da pessoa. Há uns meses algo mudou. Depois de nova abordagem, vai pela primeira vez um pouco mais longe e adianta terem sido os anos finais de Totó muito dramáticos. Após o nascimento da filha, Joana, desenvolveu uma neurose pós-parto, que acontece muitas vezes, mas no caso dela teve uma evolução má. Tinha períodos de estar muito bem e, depois, entrava numa depressão grande. Por tudo isso, acrescentava, é muito difícil e pode ser um choque grande». In Valdemar Cruz, Semanário Expresso, Edição 2245, 7 de Novembro de 2015, Revista E, código para acesso TLKQU, +E, página 24 a 32.

Cortesia do Expresso/JDACT