«(…) E os
que tinham as varas clamavam: socorro! Socorro! Da parte de el rei, deem vossas
senhorias denúncia destes desacatos aos ministros reais, senhores escrivães,
para que se seja dado o merecido castigo! E isto diziam, continuamente, mas
quanto eles mais gritavam, mais os demónios lhes davam, dizendo-lhes: … varas,
que por ambições de interesse e de cobiça mediram mal a justiça, merecem
varejões. Quien tal hace, que tal pague (Cá se fazem, cá se pagam),
diziam os demónios, que aqui não conhecemos nem rei nem roque. Perguntou o
Soldado ao Diabinho que gente era aquela e ele respondeu-lhe que eram os
alcaides (juízes) e meirinhos, (oficiais da justiça; polícias) e os que estavam
por detrás os seus escrivães, guardas e porteiros, que se tinham condenado por
fazerem mal os seus ofícios, e que, por terem sido instrumento da sua
condenação as varas e os poderes delas, davam-lhe agora por tormento as
pancadas daquelas grandes varas. Noutra câmara viu o Soldado algumas pessoas
com expressões graves, sentadas em tribunais asquerosos, a quem muitos
espíritos malignos estavam a fazer fogueiras de papel queimado e a
abrasarem-nos com o fumo e o fogo lento, enquanto lhes diziam: … o interesse e
o respeito a tal pena a causa deram, pois na vida vos fizeram fazer de torto
direito. E, perguntando o Soldado ao seu fiel companheiro quem eram os
defumados este disse-lhe que aqueles eram alguns ministros, que se tinham
condenado por terem dado sentenças injustas, por paixões ou corrupção; e que
aqueles papéis com que os ofendiam significavam os feitos delas, porque em
todos os estados havia maus e bons. Noutra parte viu o Soldado alguns sujeitos
sentados e ao redor deles muitos demónios atroando-lhe os ouvidos com disformes
buzinas e dizendo-lhes de vez em quando este quarteto: … ouvidos que ouvir na
vida não quiseram pretendentes, no inferno as tristes buzinas ouvirão
eternamente.
E
perguntando o nosso Soldado quem eram, respondeu o seu companheiro que eram os
ministros que por fecharem as portas e os ouvidos aos pretendentes (arguidos)
se condenaram. Admirado estava o Soldado por ver tal espectáculo e não
conseguia convencer-se que fosse verdadeiro, julgando ser outra visão
fantástica como a da fingida ponte, pois não se podia conceber que de homens
cristãos e honrados coubesse tais desacertos. Ainda noutra câmara
apareceram-lhe outras figuras a folhear grandes livros que alguns demónios lhe
tiravam das mãos de vez em quando, e davam-lhes com eles às pancadas,
dizendo-lhes estes dois, tão sábios e exemplares, epigramas: … folheais sem
descansar os textos com desprazeres, pois os vossos maus pareceres vos fazem
aqui penar, padeceis a infernal ira, pois fazeis com maldade ou da mentira
verdade ou da verdade mentira. Perguntou o Soldado ao companheiro endiabrado
quem eram aqueles. Ele respondeu-lhe que eram advogados que se condenaram por
irem procurar textos para trapaças que queriam sustentar os seus constituintes
pelo interesse que dele recebiam, mesmo entendendo que era prejuízo para a
justiça das partes, e que em pena disso dava-se-lhes o tormento de estarem
sempre a folhear aqueles livros com que os espancavam de vez em quando. A estes
seguia-se outro conclave de pessoas muito esfarrapadas, rotas e mal vestidas,
uns muito pensativos e sonhadores, outros mordendo as unhas e outros dando
palmadas nas testas, fazendo gestos no ar como se fossem doidos, e atrás deles
alguns demónios dando-lhe a seguinte vaia nestes dois quartetos: … pródigos,
que despendendo tanto ouro e tanta prata, tantos rubis e diamantes, tantas
pérolas e esmeraldas, encarecendo belezas que se hão-de tornar em nada, e que
terão no fim da vida apenas uma mortalha!
Perguntando
o Soldado ao seu companheiro da mão furada que gente era aquela, este
respondeu-lhe que eram poetas que se condenaram por darem epítetos às belezas
humanas, chamando-lhes divinas, angélicas, idolatradas e soberanas, e outras
semelhantes loucuras; e que por mais que se quiseram desculpar, dizendo que era
ornato e exaltação da poesia as hipérboles daquelas lisonjas, não lhes foi
aceite a desculpa. Aqueles que ali vês mais pensativos estão loucos, buscando
conceitos no entendimento para um texto poético no qual diz que Plutão condenou
o rapto de Prosérpina, feito por ele próprio, (Plutão, Hades, para os Gregos, era, de acordo com a mitologia romana, o
deus do mundo inferior e senhor da terra dos mortos; segundo a mitologia,
apaixonou-se por Prosérpina, Perséfone para os Gregos, e quando a viu, um dia,
sozinha a colher flores num prado, irrompeu do fundo da terra, raptou-a e
levo-a para o seu reino onde casou com ela e fê-la rainha do submundo; diz
ainda a mitologia que o rapto de Prosérpina causou grande aflição ao mundo dos
homens pois Prosérpina era filha de Ceres, Deméter, para os Gregos, a deusa da
natureza e da fertilidade, e esta ficou de tal maneira inconsolável com a perda
da filha que o mundo, antes eternamente ameno e florido, ficou estéril e
mergulhado em frio e gelo; perante tal calamidade Júpiter, Zeus, para os Gregos,
ordenou que Plutão deixasse que Prosérpina fosse para junto da mãe durante seis
meses ao ano enquanto os outros seis permaneceria no submundo; deste acordo
nasceram as diferentes estações do ano) e os que vês a bater na testa e
a morder as unhas estão a pensar em consoantes para os versos que já começaram».
In
António José Silva (1705-1739), As Obras do Diabinho da Mão Furada, 1861, A
Primeira Novela Sobrenatural Portuguesa, Luso Livros, Nova forma de Ler, ISBN
978-989-817-496-3.
Cortesia
de LLivros/JDACT