quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Claraboia. José Saramago. «Suspirou para a imagem que o espelho lhe mostrava e fugiu dela. Na cozinha, as duas velhas continuavam a falar. Muito parecidas, os cabelos todos brancos, os olhos castanhos, os mesmos vestidos negros de corte simples, falavam com vozinhas agudas e rápidas»

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«Em todas as almas, como em todas as casas, além da fachada, há um interior escondido». In Raul Brandão

«(…) Silvestre abriu a janela e deitou uma vista de olhos para fora. Nada de novo. Pouca gente passava na rua. Não muito longe, uma mulher apregoava fava-rica. Silvestre não chegava a perceber como vivia aquela mulher. Nenhum dos seus conhecidos comia fava-rica, ele próprio não a comia há mais de vinte anos. Outros tempos, outros costumes, outras comidas. Resumida a questão nestas palavras, sentou-se. Abriu a onça, pescou as mortalhas na barafunda de objectos que pejavam a banca, e fez um cigarro. Acendeu-o, saboreou uma fumaça e deitou mãos ao trabalho. Tinha umas gáspeas a pôr, e aí estava uma obra em que sempre aplicava todo o seu saber. De vez em quando, relanceava os olhos para a rua. A manhã ia aclarando pouco a pouco, embora o céu estivesse coberto e houvesse na atmosfera um ligeiro véu de névoa que esbatia os contornos das coisas e das pessoas. Na multidão de ruídos que já enchia o prédio, Silvestre começou a distinguir um bater de saltos nos degraus da escada. Identificou-os imediatamente. Ouviu abrir a porta que dava para a rua e debruçou-se: Bom dia, menina Adriana! Bom dia, senhor Silvestre. A rapariga parou debaixo da janela. Era baixinha e usava óculos de lentes grossas que lhe transformavam os olhos em duas bolinhas minúsculas e inquietas. Estava a meio do caminho dos trinta aos quarenta anos, e já um que outro cabelo branco lhe riscava o penteado simples. Então, ao seu trabalho, heim? É verdade. Até logo, senhor Silvestre. Era assim todas as manhãs. Quando Adriana saía de casa já o sapateiro estava à janela do rés-do-chão. Impossível escapar sem ver aquela gaforina desgrenhada e sem ouvir e retribuir os inevitáveis cumprimentos. Silvestre seguiu-a com os olhos. Assim, de longe, parecia, na comparação pitoresca do sapateiro, um saco mal atado. Chegada à esquina da rua, Adriana voltou-se e acenou um adeus para o segundo andar. Depois, desapareceu. Silvestre largou o sapato e torceu a cabeça para fora da janela. Não era bisbilhoteiro, mas gostava das vizinhas do segundo, boas freguesas e boas pessoas. Com a voz alterada pela torção do pescoço, saudou: viva, menina Isaura! Que tal o dia, hoje? Do segundo andar, atenuada pela distância, veio a resposta: não está mau, não. O nevoeiro... Não se chegou a saber se o nevoeiro prejudicava, ou não, a beleza da manhã. Isaura deixou morrer o diálogo e fechou a janela devagar. Não desgostava do sapateiro, do seu ar a um tempo reflectido e risonho, mas nessa manhã não sentia ânimo para conversar. Tinha um monte de camisas para acabar até ao fim da semana. Sábado tinha que entregá-las, desse lá por onde desse. Por sua vontade, acabaria de ler o romance. Só lhe faltavam umas cinquenta páginas e estava na passagem mais interessante. Aqueles amores clandestinos, sustentados através de mil peripécias e contrariedades, prendiam-na. Além disso, o romance estava bem escrito. Isaura tinha experiência bastante de leitora para assim julgar. Hesitou. Mas bem via que nem sequer tinha o direito de hesitar. As camisas esperavam-na. Ouvia lá dentro um ruído de vozes: a mãe e a tia falavam. Muito falavam aquelas mulheres. Que tinham elas a dizer todo o santo dia, que não estivesse já dito mil vezes? Atravessou o quarto onde dormia com a irmã. O romance estava à cabeceira. Lançou-lhe os olhos vorazes, mas seguiu. Parou diante do espelho do guarda-vestidos que a refletia da cabeça aos pés. Trazia uma bata caseira que lhe modelava o corpo esguio e magro, mas flexível e elegante. Com as pontas dos dedos percorreu as faces pálidas onde as primeiras rugas abriam sulcos finos, mais adivinhados que visíveis. Suspirou para a imagem que o espelho lhe mostrava e fugiu dela. Na cozinha, as duas velhas continuavam a falar. Muito parecidas, os cabelos todos brancos, os olhos castanhos, os mesmos vestidos negros de corte simples, falavam com vozinhas agudas e rápidas, sem pausas e sem modulação: já te disse. O carvão é só terra. É preciso ir reclamar à carvoaria, dizia uma. Está bem, respondia a outra. Que estão a dizer?, perguntou Isaura, entrando. Uma das velhas, a de olhar mais vivo e de cabeça mais erecta, respondeu: é o carvão que é uma lástima. Tem que se reclamar. Está bem, tia. Tia Amélia era, por assim dizer, a ecónoma da casa. Era ela quem cozinhava, fazia contas e dividia as rações pelos pratos. Cândida, a mãe de Isaura e Adriana, tratava dos arranjos domésticos, das roupas, dos pequenos bordados que ornamentavam profusamente os móveis e dos solitários com flores de papel que só eram substituídas por autênticas flores nos dias festivos. Cândida era a mais velha, e, tal como Amélia, viúva. Viúvas a que a velhice já tranquilizara. Isaura sentou-se à máquina de costura. Antes de começar o trabalho, olhou o rio que se estendia muito largo, com a outra margem oculta pelo nevoeiro. Parecia o oceano. Os telhados e as chaminés estragavam a ilusão mas, mesmo assim, fazendo força para os não ver, o oceano surgia nos poucos quilómetros de água. Uma alta chaminé de fábrica, à esquerda, esborratava o céu branco com golfadas de fumo». In José Saramago, Claraboia, 1953, Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-441-6.

Cortesia ECaminho/JDACT