«…
estou deitado sobre a minha ausência, como poderia estar deitado se existisse. Amanhã
as ondas imitar-me-ão na praia…»
Arte
Poética
«o
poema não tem mais que o som do seu sentido,
a letra
p não é a primeira letra da palavra poema,
o poema
é esculpido de sentidos e essa é a sua forma,
poema
não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se erva
fresca
e os teus lábios, lê-se sorriso estendido em mil
árvores
ou céu de punhais, ameaça, lê-se medo e procura
de
cegos, lê-se mão de criança ou tu, mãe, que dormes
e me
fizeste nascer de ti para ser palavras que não
se escrevem,
lê-se país e mar e céu esquecido e
memória,
lê-se silêncio, sim, tantas vezes, poema lê-se silêncio,
lugar
que não se diz e que significa, silêncio do teu
olhar
de doce menina, silêncio ao domingo entre as conversas,
silêncio
depois de um beijo ou de uma flor desmedida, silêncio
de ti,
pai, que morreste em tudo só para existires nesse poema
calado,
quem o pode negar?, que escreves sempre e sempre, em
segredo,
dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem.
o poema
não é esta caneta de tinta preta, não é esta voz,
a letra
p não é a primeira letra da palavra poema,
o
poema é quando eu podia dormir até tarde nas férias
do
verão e o sol entrava pela janela, o poema é onde eu
fui feliz
e onde eu morri tanto, o poema é quando eu não
conhecia
a palavra poema, quando eu não conhecia a
letra
p e comia torradas feitas no lume da cozinha do
quintal,
o poema é aqui, quando levanto o olhar do papel
e deixo
as minhas mãos tocarem-te, quando sei, sem rimas
e sem
metáforas, que te amo, o poema será quando as crianças
e os
pássaros se rebelarem e, até lá, irá sendo sempre e tudo.
o
poema sabe, o poema conhece-se e, a si próprio, nunca se chama
poema,
a si próprio, nunca se escreve com p, o poema dentro de
si é
perfume e é fumo, é um menino que corre num pomar para
abraçar
o seu pai, é a exaustão e a liberdade sentida, é tudo
o que
quero aprender se o que quero aprender é tudo,
é o teu
olhar e o que imagino dele, é solidão e arrependimento,
não são
bibliotecas a arder de versos contados porque isso são
bibliotecas
a arder de versos contados e não é o poema, não é a
raiz
de uma palavra que julgamos conhecer porque só podemos
conhecer
o que possuímos e não possuímos nada, não é um
torrão
de terra a cantar hinos e a estender muralhas entre
os versos
e o mundo, o poema não é a palavra poema
porque
a palavra poema é uma palavra, o poema é a
carne
salgada por dentro, é um olhar perdido na noite sobre
os telhados
na hora em que todos dormem, é a última
lembrança
de um afogado, é um pesadelo, uma angústia, esperança.
o
poema não tem estrofes, tem corpo, o poema não tem versos,
tem sangue,
o poema não se escreve com letras, escreve-se
com grãos
de areia e beijos, pétalas e momentos. gritos e
incertezas,
a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
a palavra
poema existe para não ser escrita como eu existo
para
não ser escrito, para não ser entendido, nem sequer por
mim próprio,
ainda que o meu sentido esteja em todos os lugares
onde
sou, o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos,
o poema
é o meu rosto, que não vejo, e que existe porque me
olhas,
o poema é o teu rosto, eu, eu não sei escrever a
palavra
poema, eu, eu só sei escrever o seu sentido».
Poema
de José Luís Peixoto, in ‘A Criança em Ruínas’
Cortesia
de Quetzal/JDACT