domingo, 6 de dezembro de 2015

Origens do Totalitarismo. Hannah Arendt. «Dessas transformações resultou o desnudamento dos componentes, antes ocultos, de nossa história. Isso não significa que o que desabou na crise (talvez a mais profunda na história do Ocidente desde a queda do Império Romano) foi mera fachada…»

Cortesia de wikipedia

O antissemitismo como uma ofensa ao bom senso
«(…) Após a catástrofe final, isto é, após a aniquilação quase completa dos judeus da Europa, a tese do antissemitismo eterno tornou-se mais perigosa do que nunca, pois ela poderia levar até à absolvição os mais tenebrosos criminosos entre os antissemitas. Longe de garantir a sobrevivência do povo judeu, o antissemitismo ameaçou-o claramente de extermínio. Contudo, essa explicação do antissemitismo, tal como a teoria do bode expiatório, e por motivos semelhantes, sobreviveu ao confronto com a realidade, pois ela acentua a absoluta inocência das vítimas do terror moderno, o que aparentemente é confirmado pelos factos. Em comparação com a teoria do bode expiatório, ela tem até a vantagem de responder à incómoda questão por que os judeus e não outros? de maneira simplória: eterna hostilidade. É deveras notável que as doutrinas que ao menos tentam explicar o significado político do movimento antissemita neguem qualquer responsabilidade específica da parte dos judeus e se recusem a discutir o assunto nestes termos. Ao implicitamente recusarem abordar o significado da conduta humana, assemelham-se às modernas práticas e formas dos governos que, por meio do terror arbitrário, liquidam a própria possibilidade de acção humana. De certa forma, nos campos de extermínio nazistas os judeus eram assassinados de acordo com a explicação oferecida por essas doutrinas à razão do ódio: independentemente do que haviam feito ou deixado de fazer, independentemente de vício ou virtude pessoais. Além disso, os próprios assassinos, apenas seguindo ordens e orgulhosos de sua desapaixonada eficiência, assemelhavam-se sinistramente aos instrumentos inocentes de um ciclo inumano e impessoal de eventos, exactamente como os considerava a doutrina do eterno antissemitismo. Esses denominadores comuns entre a teoria e a prática não indicam, por si só, a verdade histórica, embora espelhem o carácter oportunista das opiniões popularmente propaladas, revelando e explicando porque elas são tão facilmente aceitáveis pela multidão. O historiador interessa-se por elas enquanto são parte da história de que tratam, e na medida em que se interpõem no caminho da sua busca à verdade. Mas, sendo contemporâneo dos eventos, o historiador é tão sujeito ao poder persuasório dessas opiniões como qualquer outra pessoa. Para o historiador dos tempos modernos é especialmente importante ter cuidado com as opiniões geralmente aceitas, que dizem explicar tendências históricas, porque durante o último século foram elaboradas numerosas ideologias que pretendem ser as chaves da história, embora não passem de desesperados esforços de fugir à responsabilidade.
Platão, na sua luta contra os sofistas, descobriu que a arte universal de encantar o espírito com argumentos nada tinha a ver com a verdade, mas só visava a conquista de opiniões, que são mutáveis por sua própria natureza e válidas somente na hora do acordo e enquanto dure o acordo. Descobriu também que a verdade ocupa uma posição muito instável no mundo, pois as opiniões, isto é, o que pode pensar a multidão, como escreveu, decorrem antes da persuasão do que da verdade. A diferença mais marcante entre os sofistas antigos e os modernos é simples: os antigos satisfaziam-se com a vitória passageira do argumento às custas da verdade, enquanto os modernos querem uma vitória mais duradoura, mesmo que às custas da realidade. Noutras palavras, aqueles destruíam a dignidade do pensamento humano, enquanto estes destroem a dignidade da acção humana. O filósofo preocupava-se com os manipuladores da lógica, enquanto o historiador vê obstáculos nos modernos manipuladores dos factos, que destroem a própria história e a sua inteligibilidade, colocada em perigo sempre que os factos deixam de ser considerados parte integrante do mundo passado e presente, para serem indevidamente usados a fim de demonstrar esta ou aquela opinião. É certo que seria difícil encontrar o caminho no labirinto dos factos desarticulados, se fossem abandonadas as opiniões e rejeitada a tradição. Contudo, essas perplexidades da historiografia são consequências ínfimas se forem consideradas as profundas transformações do nosso tempo e o seu efeito sobre as estruturas históricas do mundo ocidental. Dessas transformações resultou o desnudamento dos componentes, antes ocultos, de nossa história. Isso não significa que o que desabou na crise (talvez a mais profunda na história do Ocidente desde a queda do Império Romano) foi mera fachada que encobria esses componentes, embora não passassem de fachada muitas coisas que, há apenas algumas décadas, eram consideradas essenciais. A simultaneidade entre o declínio do Estado-nação europeu e o crescimento de movimentos antissemitas, a coincidência entre a queda de uma Europa organizada em nações e o extermínio dos judeus, preparado pela vitória do antissemitismo sobre todos os outros ismos que competiam na luta pela persuasão e conquista da opinião pública, têm de ser interpretadas como sério elemento no estudo da origem do antissemitismo. O antissemitismo moderno deve ser encarado dentro da estrutura geral do desenvolvimento do Estado-nação, enquanto, ao mesmo tempo, a sua origem deve ser encontrada em certos aspectos da história judaica e nas funções especificamente judaicas, isto é, desempenhadas pelos judeus no decorrer dos últimos séculos. Se no estágio final da desintegração os slogans antissemitas constituíam o meio mais eficaz de inspirar grandes massas para levá-las à expansão imperialista e à destruição das velhas formas de governo, então a história da relação entre os judeus e o Estado deve conter indicações elementares para entender a hostilidade entre certas camadas da sociedade e os judeus». In Hannah Arendt, The origins of totalitarianism, 1949, Origens do Totalitarismo, Mary McCarthy West, 1979, Wikipédia.

Cortesia de Wikipédia/JDACT