domingo, 6 de dezembro de 2015

O Erotismo. Georges Bataille. «Os seres que se reproduzem são distintos uns dos outros, e os seres reproduzidos são distintos entre si como são distintos daqueles que os geraram. Cada ser é distinto de todos os outros»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Do erotismo é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte. Para falar a verdade, isto não é uma definição, mas eu penso que esta fórmula dá o sentido do erotismo melhor que uma outra. Se se tratasse de definição precisa, seria necessário partir certamente da actividade sexual de reprodução da qual o erotismo é uma forma particular. A actividade sexual de reprodução é comum aos animais sexuados e aos homens, mas, aparentemente, só os homens fizeram de sua actividade sexual uma actividade erótica, e o que diferencia o erotismo da actividade sexual simples é uma procura psicológica independente do fim natural encontrado na reprodução e na preocupação das crianças. Abandonando essa definição elementar, voltarei imediatamente à fórmula que propus inicialmente, segundo a qual o erotismo é a aprovação da vida até na morte. Com efeito, se bem que a actividade erótica seja inicialmente uma exuberância da vida, o objecto dessa procura psicológica, independente, como eu o disse, da preocupação de reprodução da vida, não é estranho à morte. Existe aí um paradoxo tão grande que, sem mais demora, tentarei dar uma aparência de razão de ser à minha afirmação através de duas citações de Sade: infelizmente, não há nada mais seguro que o secreto, e não há um libertino que esteja um pouco dentro do vício que não saiba quanto o assassínio tem de poder sobre os sentidos... Numa outra frase mais singular ele diz: não há melhor meio para se familiarizar com a morte do que associá-la a uma ideia libertina. Eu falei de uma aparência de razão de ser. Com efeito, o pensamento de Sade poderia ser uma aberração. De qualquer maneira, mesmo se é verdade que a tendência a que ele se refere não é tão rara na natureza humana, trata-se de sensualidade aberrante. Resta, entretanto, uma relação entre a morte e a excitação sexual. A visão ou a imaginação do assassínio podem dar, pelo menos a doentes, o desejo do prazer sexual. Não podemos nos limitar a dizer que a doença é a causa dessa relação. Admito pessoalmente que uma verdade se revela no paradoxo de Sade. Essa verdade não é restrita ao horizonte do vício: acredito mesmo que ela pode ser a base das nossas representações da vida e da morte. Acredito, enfim, que não podemos reflectir sobre o ser independentemente dessa verdade. O ser, com frequência, parece dado ao homem fora dos movimentos da paixão. E eu direi mesmo que nunca devemos imaginá-lo fora desses movimentos. Escuso-me de partir agora de uma consideração filosófica. Em geral, o erro da filosofia é afastar-se da vida. Mas eu quero tranquilizá-los de imediato. A consideração que introduzo refere-se à vida da maneira mais íntima: refere-se à actividade sexual, encarada desta vez à luz da reprodução. Eu disse que a reprodução se opunha ao erotismo, mas se é verdade que o erotismo se define pela independência do prazer erótico e da reprodução como fim, o sentido fundamental da reprodução não constitui menos a chave do erotismo. A reprodução coloca em jogo seres descontínuos. Os seres que se reproduzem são distintos uns dos outros, e os seres reproduzidos são distintos entre si como são distintos daqueles que os geraram. Cada ser é distinto de todos os outros. O seu nascimento, a sua morte e os acontecimentos da sua vida podem ter, para os outros, certo interesse, mas ele é o único directamente interessado. Só ele nasce. Só ele morre. Entre um ser e outro há um abismo, uma descontinuidade. Esse abismo situa-se, por exemplo, entre aqueles que me escutam e aquilo que eu lhes falo. Tentamos comunicar, mas nenhuma comunicação entre nós poderá suprimir uma primeira diferença. Se morrerem, não sou eu que morro. Nós somos, o leitor e eu, seres descontínuos. Mas não posso evocar este abismo que nos separa sem ter logo o sentimento de uma mentira. Este abismo é profundo, e não vejo como suprimi-lo. Somente podemos, em comum, sentir a sua vertigem. Ele nos pode fascinar. Este abismo, num sentido, é a morte, e a morte é vertiginosa, fascinante. Tentarei agora mostrar que, para nós que somos seres descontínuos, a morte tem o sentido da continuidade do ser: a reprodução leva à descontinuidade dos seres, mas ela põe em jogo a sua continuidade, isto é, ela está intimamente ligada à morte. É falando da reprodução dos seres e da morte que me esforçarei para mostrar a identidade da continuidade dos seres e da morte que são uma e outra igualmente fascinantes e essa fascinação domina o erotismo. Quero falar de uma desordem elementar, de uma coisa cuja essência é uma mudança que inquieta. Mas, inicialmente, os factos de que partirei devem parecer insignificantes. São factos que a ciência objectiva estabelece e que nada distingue aparentemente de outros que sem dúvida nos concernem, mas de longe, sem nada colocar em jogo que nos possa comover intimamente. Essa aparente insignificância é enganadora, mas falarei dela, de início, com toda simplicidade, como se não tivesse a intenção de desiludi-los daqui a pouco. Todos sabem que os seres vivos se reproduzem de duas maneiras. Os seres elementares conhecem a reprodução assexuada, mas os seres mais complexos reproduzem-se sexualmente. Na reprodução assexuada, o ser simples que é a célula divide-se num ponto do seu crescimento. Formam-se dois núcleos, e de um único ser resultam dois. Mas não podemos dizer que um primeiro ser deu origem a um segundo. Os dois seres novos são igualmente produtos do primeiro. O primeiro ser desapareceu». In Georges Bataille, O Erotismo, 1957/1968, tradução de João Bernard Costa, L&PM Editores, 1987, Editora Antígona, Lisboa, 1988, ISBN 978-972 608-018-3.

Cortesia de L&PM/E Antígona/JDACT