«[…]
nasci para nascer, para impedir a passagem daquilo que se aproxima, daquilo que
me bate no peito como um novo coração palpitante». In Pablo Neruda
É muito cedo
Mulher
distante
«Esta
mulher cabe nas minhas mãos. É branca e loura, e levá-la-ia nas minhas mãos
como uma cesta de magnólias. Esta mulher cabe nos meus olhos. Envolve-a o meu
olhar, o meu olhar que nada vê quando a envolve. Esta mulher cabe nos meus
desejos. Despida, está sob a anelante labareda da minha vida e queima-a o meu
desejo como uma brasa. Todavia, mulher distante, as minhas mãos, os meus olhos
e os meus desejos conservam inteira a sua carícia, porque só tu, mulher distante,
só tu cabes no meu coração.
Um
amor
Pol
ti, junto dos jardins recém-florescidos afligem-me os perfumes da Primavera. Esqueci
o teu rosto, não recordo as tuas mãos, como beijavam os teus lábios? Por ti,
amo as alvas estátuas adormecidas nos parques que não têm voz nem olhos. Esqueci
a tua voz, a tua voz alegre, esqueci os teus olhos. Como uma flor ao seu
perfume, estou ligado à tua recordação imprecisa. Estou perto da dor como uma
ferida, se me tocares, magoar-me-ás irremediavelmente. Envolvem-me as tuas carícias
como as trepadeiras às paredes sombrias. Esqueci o teu amor e, não obstante,
adivinho-te por detrás de todas as janelas. Por ti, afligem-me os pesados
perfumes do Estio: por ti, torno a vislumbrar os sinais que precipitam os
desejos, as estrelas em fuga, os objectos que caem.
Ventos
da noite
Como
uma bambolina, a Lua deve culminar nas alturas. Ventos da noite, tenebrosos
ventos! Que rugem e fendem as ondas do céu, que pisam, com os pés de rocio, os
telhados. Estendido, dormindo enquanto as ébrias ressacas do céu se desmoronam,
bramindo, no pavimento. Estendido, dormindo, quando as distâncias terminam e
voam trazendo aos meus olhos o que estava longe. Ventos da noite, tenebrosos
ventos! Que asas tão pequenas as minhas neste tremendo bater de asas! Que
grande é o mundo diante da minha garganta contraída! No entanto, posso, se
quero, morrer, estender-me na noite para que me arraste a raiva do vento. Morrer,
estender-me adormecido, voar na violenta maré, cantando, estendido, dormindo!
Galopam os cascos do céu nos telhados. Uma chaminé soluça... Ventos da noite,
tenebrosos ventos!
É
muito cedo
Grave
imobilidade do silêncio. Altera-a o cacarejo de um galo. Também a passada de um
homem de trabalho. Mas o silêncio continua. De repente, uma mão distraída no
meu peito sentiu o latejo do meu coração. Não deixa de ser surpreendente. E de
novo, oh, os dias de outrora!, as minhas recordações, as minhas dores, as
minhas intenções caminham agachadas para se crucificarem nos caminhos do espaço
e do tempo. Assim, pode transita-se com facilidade.
A
leprosa
Vi
chegar a leprosa. Ficou estendida junto da mata de azáleas que sorri no
abandono do hospital. Quando chegar a noite, a leprosa partirá. A leprosa
partirá, porque o hospital não a recebe. Partirá quando o dia for mergulhando suavemente
no entardecer, mas até o dia prolongará os seus clarões amarelos para não
partir juntamente com a leprosa. Chora, junto da mata de azáleas. As irmãs
louras e vestidas de azul abandonaram-na: não curarão as suas tristes chagas as
irmãs louras vestidas de azul. As crianças, proibidas de se lhe aproximar,
fugiram pelos corredores. Esqueceram-na os cães, os cães que lambem as feridas
dos esquecidos. Mas a mata rosada de azáleas, sorriso único e terno do hospital,
não se moveu do canto do pátio, do canto do pátio onde a leprosa ficou
abandonada.
Canção
Minha
prima Isabela... Não conheci a minha prima Isabela. Atravessei, anos depois, o
pátio ajardinado em que, dizem-me, nos vimos e amámos na infância. E um lugar
de sombra: como nos cemitérios, há nele árvores inverniças e endurecidas. Um
musgo amarelo rodeia as cinturas de uns vasos de greda parda reclinados no pátio
destas recordações... Foi, pois, aí que vi minha prima Isabela. Devo ter-lhe
fixado esses olhos das crianças que esperam algo que vai acontecer, está a
acontecer ou aconteceu... Prima Isabela, noiva destinada, corre um caudal
contínuo, eterno, entre as nossas solidões. Eu, deste lado, corro para vales que
não descortino, os meus gritos, as minhas acções que regressam a meu lado em
ecos inúteis e perdidos. Tu, do outro lado... Mas rocei-te muitas vezes,
Isabela. Porque serás (quem sabe onde!) essa mulher retraída que, quando
caminho no crepúsculo, conta da janela, como eu, as primeiras estrelas. Prima
Isabela, as primeiras estrelas». In Pablo Neruda, Nasci para Nascer, tradução
de Eduardo Saló e Mário Dionísio, Publicações Europa América, Estudos e
Documentos, nº 159, 1978, edição nº 4159/2648.
Cortesia
de PEAmérica/JDACT