A
Salvação da Alma
«Briga
de irmãos... Nós éramos cinco e brigávamos muito, recordou Augusto, olhos perdidos
num ponto X, quase sorrindo. Isto não quer dizer que nos detestássemos. Pelo contrário.
A gente gostava bastante uns dos outros e não podia viver na separação. Se um de
nós ia para o colégio (era longe o colégio, a viagem se fazia a cavalo, dez léguas
na estrada lamacenta, que o governo não conservava), os outros ficavam tristes uma
semana. Depois esqueciam, mas a saudade do mano muitas vezes estragava o nosso banho
no poço, irritava ainda mais o malogro da caça de passarinho: … se Miguel estivesse
aqui, garanto que você não deixava o tiziu fugir, gritava Édison. Você assustou
ele falando alto... Miguel te quebrava a cara. Miguel era o mais velho, e fora fazer
o seu ginásio. Não se sabe bem por que sua presença teria impedido a fuga do pássaro,
nem ainda por que o tapa no rosto de Tito, com o tiziu já longínquo, teria
remediado o acontecimento. Mas o facto é que a figura de Miguel, evocada naquele
instante, embalava nosso desapontamento e de certo modo participava dele, ajudando-nos
a voltar para casa de mãos vazias e a enfrentar o risinho malévolo dos Guimarães:
… o que é que vocês pegaram hoje? Nada! Miguel era deste tamanho, impunha-se. Além
disto, sabia palavras difíceis, inclusive xingamentos, que nos deixavam de boca
aberta, ao explodirem na discussão, e que decorávamos para aplicar na primeira
oportunidade, em nossas brigas particulares com os meninos da rua. Realmente, Miguel
fazia muita falta, embora cada um de nós trouxesse na pele a marca de sua autoridade.
E pensávamos com ânsia no seu regresso, um pouco para gozar de sua companhia, outro
pouco para aprender nomes feios, e bastante para descontar os socos que ele nos
dera, o miserável.
Vocês,
criados em cidade grande, não se espantem com esse jeito de nossa infância do interior.
Ah, no interior se briga muito. Até mesmo no meu Estado, símbolo de ordem e moderação,
terra de bois pacíficos e de políticos suaves e bem-comportados... Há uma força
acumulada querendo expandir-se, uma energia que sobrou do tempo da luta com os emboabas,
não sei... Olhem: na minha terra damos grande apreço à cultura intelectual. Mas
confiamos pouco em seus efeitos. O delegado de polícia, um bacharel gordo e de bigodes
fornidos, lia Spinoza, tomava a boa pinga de Januária e não gostava de amolações;
se as amolações apareciam, chamava o comandante do destacamento e mandava
rachar a lenha. Com o pau cantando, ele voltava ao seu Spinoza. De resto, nas relações
civis, em meio semirrural, o tapa, o murro, o pescoção e o cacete são recursos limpos
de... polémica. Só o punhal e a garrucha são proibidos; mas, em casos extremos,
é lícito empregá-los. O povo não gosta de assassinos, embora inveje os valentes.
Ai de quem apanha sem reagir, e isto nós sabíamos de sobra, porque papai o
pregava ao almoço e ao jantar, ele que tinha uma vida agitada, no transporte de
tropas para o Espírito Santo, negócio perigoso e de lucro incerto, por causa dos
rios sem ponte, dos ladrões de estrada, dos camaradas bêbedos, das febres, do crédito
a doze meses, dos compradores que fincavam pé no mundo e nunca mais davam as caras...
O velho nos contava mais de uma história de noite dormida ao relento, em que
ele e seu pessoal acordavam com os animais soltos no campo, aos relinchos, o fogo
apagado, e vultos escuros remexendo os alforjes num canto... Pois em nenhuma dessas
ocasiões precisou liquidar ninguém, nem permitiu que o fizessem. Tudo acabava com
os ladrões amarrados e conduzidos à vila mais próxima, às vezes com algumas costelas
quebradas, mas que diabo!, o lombo carece sofrer um bocadinho. Por isso mesmo, um
dia ou outro nós nos surrávamos a frio, sem qualquer motivo, porque o lombo carece
sofrer, e há um certo prazer em curar ferida». In Carlos Drummond de Andrade, Contos
de Aprendiz, 1951, Livraria/Editora José Olympio, Penguin Randon House, grupo
Editorial Unipessoal, Companhia das Letras Portugal, Lisboa, 2015, ISBN
978-989-665-009-4.
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da CdasLetras/JDACT