sábado, 12 de dezembro de 2015

Quarteto de Alexandria. Balthasar. Lawrence Durrell. «E então o seu olhar surpreendeu o retrato de Justine que Clea me tinha oferecido numa existência anterior. O retrato que foi interrompido por um beijo, disse ele. Como é bom tornar a vê-lo, como é bom! Sorriu».

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) E foi maravilhoso ouvi-lo rir uma vez mais. Mas agora as suas palavras tinham-me mergulhado numa impaciência, num desejo de estudar as suas entrelinhas, de rever, não o meu livro (que para mim nunca teve qualquer importância posto que nunca será publicado), mas a minha visão da cidade e dos seus habitantes. Porque a minha Alexandria pessoal se tornou, neste isolamento, tão cara como uma filosofia de introspecção, quase uma monomania. Sentia-me tão comovido que nem sabia que dizer-lhe. Fique connosco, Balthasar... fique por algum tempo... Partimos dentro de duas horas, disse ele, e acrescentou palpando o maço de papéis: isto poderá provocar-lhe febre e visões. Excelente, respondi-lhe, é justamente o que preciso. Nós somos todos criaturas reais, disse ele, a despeito daquilo que você tentou fazer connosco, pelo menos aqueles de nós que ainda se encontram vivos. Melissa, Pursewarden, esses nada podem contestar porque estão mortos. Pelo menos é o que se pensa. É o que se pensa. As melhores respostas vêm sempre do além-túmulo.
Sentámo-nos e começámos a falar do passado mas com certo constrangimento. Balthasar já tinha jantado a bordo e tudo quanto me foi possível oferecer-lhe foi uma taça do bom vinho da ilha que ele saboreou lentamente. Mais tarde pediu-me para ver a filha de Melissa, e conduzi-o através do caramanchão de loureiros até à janela iluminada pelo fogo onde a vimos a dormir, muito bela, mamando gravemente no dedo. Os olhos sombrios e cruéis de Balthasar enterneceram-se enquanto a contemplava, de respiração suspensa. Um dia, disse ele em voz baixa, Nessim quererá vê-la. Mais breve do que você julga. Começou já a falar dela, a mostrar curiosidade. Com a idade sentirá necessidade da criança, não se esqueça do que eu lhe digo. E citou em grego esta frase: No princípio os jovens, tal como a vinha, apoiam-se sobre os tutores dos mais velhos, que sentem prazer em suportar sobre eles os dedos doces e meigos; mais tarde são os velhos que se apoiam nos belos corpos dos jovens para descer o rio da morte.
Conservei-me calado. Agora era o próprio quarto que respirava, e não os nossos corpos. Você tem vivido aqui na solidão, observou Balthasar. Mas numa esplêndida, numa desejável solidão. Sim. Invejo-o sinceramente. E então o seu olhar surpreendeu o retrato de Justine que Clea me tinha oferecido numa existência anterior. O retrato que foi interrompido por um beijo, disse ele. Como é bom tornar a vê-lo, como é bom! Sorriu. É como escutar uma frase musical que nos é querida, que sabemos de cor, e que desperta uma emoção que se pode constantemente renovar, que nunca nos falha. Não disse nada. Não me atrevia. Ele voltou-se então para mim. E Clea?, disse por fim, na voz de quem se dirige a um eco. Respondi: não tenho notícias dela há dois anos, ou mais. O tempo aqui não conta. Espero que se tenha casado, que tenha ido para outro país, que tenha filhos e seja conhecida como pintora..., tudo o que de melhor se lhe possa desejar. Balthasar olhou para mim curiosamente e sacudiu a cabeça: não, disse ele, mas sem acrescentar mais nada. Já passava bastante da meia-noite quando do meio das oliveiras ocultas na treva subiram as vozes dos marinheiros que o chamavam. Acompanhei-o à praia, triste por vê-lo partir tão depressa. Um escaler esperava-o com um marinheiro aos remos. O homem disse qualquer coisa em árabe. O mar primaveril estava tentadoramente tépido depois de um dia de sol descoberto e, quando Balthasar entrou no escaler tomou-me a fantasia de segui-lo nadando até ao navio ancorado a menos de duzentos metros da praia. Foi o que fiz e fiquei a flutuar diante do costado para vê-lo subir a escada do portaló enquanto içavam o escaler. Cuidado com a hélice, gritou-me ele. Afaste-se antes do motor começar a trabalhar... Esteja descansado». In Lawrence Durrell, Quarteto de Alexandria, 1958, Balthazar, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT