quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

31 no Século XVIII. O Crime dos Illuminati. 1787. César Vidal. «À resistência a esse plano revolucionário, libertador e cidadão, teriam dito em Paris, eles chamavam ‘zecutar’ justiça. Com certeza, nem Marat, nem Danton nem Robespierre estariam de acordo com aquele julgamento…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Os Filhos da Luz. Baviera, 1787
«(…) Demoraram apenas alguns minutos para reunir as cordas, fazer um nó corrediço e colocá-las no pescoço dos presos. Antes que Karl conseguisse ver o que estava acontecendo, os homens eram arrastados como se fossem cães levados pela coleira. Levantando uma poeirada seca e amarela, saíram do povoado, enquanto cuspiam ameaças e insultos sobre os revolucionários. Parem! Parem! Karl tentou ver quem tinha dado a ordem detendo aquela massa no meio da qual ele se movia procurando não se ver envolvido. Não conseguiu. Saia aí do meio, monsieur Blondel, escutou o homem seco dizer. O povoado vai zecutar justiça. O povoado vai zecutar justiça... Sim, a gramática era deplorável, mas as ideias não poderiam ser mais claras. Eles, a mulher bonita, a velha, o homem seco, os que tinham fornecido as cordas, o rapaz que tinha desejado ter uma guilhotina..., todos eles representavam o povoado e não iam permitir que os homens de Paris lhes impusessem a sua revolução, essa revolução que começava levando os produtos do campo e em seguida queimava igrejas e plantava uma guilhotina na praça do lugar. À resistência a esse plano revolucionário, libertador e cidadão, teriam dito em Paris, eles chamavam zecutar justiça. Com certeza, nem Marat, nem Danton nem Robespierre estariam de acordo com aquele julgamento e, certamente, teriam sérias restrições em considerar povo aqueles que estavam dispostos a enfrentá-los. Reiniciaram a caminhada. Karl então reparou num homem vestido de maneira modesta, embora melhor do que o resto dos camponeses, afastado à beira da estrada. Tinha os olhos avermelhados e o horror estampado no rosto. Devia ser o tal Blondel. Bem que ele gostaria de sair do tumulto e lhe dizer que não se preocupasse, que tinha feito o possível, que até tinha chegado às raias do heroísmo com o seu comportamento. Não fez isso, porque a vontade de saber onde aquilo ia dar era mais poderosa naquele momento do que qualquer outra consideração.
Ali... Ali! A multidão acelerou o passo como se tivesse acabado de ouvir um ensalmo. Karl também apertou o passo para evitar ver-se envolvido. Foi assim que chegou, suarento e sufocado, até uma esplanada. Com certeza, aquele terreno devia ser bonito em circunstâncias normais. Era uma pradaria branda e suave que ficava muito perto de uma pequena floresta, Sim, seguramente os aldeões deviam-se reunir ali em dias de festa para beber e se divertir. Era o lugar ideal. Venham! Ali mesmo! Karl viu agora com toda a nitidez o lugar que o outro apontava. Tratava-se de um pequeno grupo de árvores robustas, circunspectas, transpirando dignidade. Pareciam estar ali desde a aurora dos tempos para cumprirem a sua missão solene e especial, de servirem de patíbulos aos que se tinham atrevido a arrasar o que aqueles que arrancavam o sustento da mãe Terra consideravam mais sagrado. Quase como se fossem um só homem, meia dúzia de lavradores atiraram as cordas até à copa das árvores. As sogas não chegaram a tocar o chão. Antes que terminassem de cair, seis grupos de pessoas, orquestrados como se tivessem ensaiado a execução dezenas de vezes, apoderaram-se da ponta e começaram a puxar com todas as suas forças. Karl observou horrorizado a maneira como os corpos dos soldados se elevavam no ar enquanto os seus rostos se congestionavam pela pressão que a soga exercia nas suas gargantas. Era duvidoso que os enforcassem. Seguramente, em vez dessa morte quase rápida que vem determinada pela fractura da nuca, sofriam os estertores do estrangulamento. De facto, eles retorciam-se como peixes tirados da água, enquanto os seus pés se separavam do chão.
Teve a sensação de que a agonia se prolongava eternamente, mas, na verdade, ela foi rápida. Apenas um deles, o que parecia mais jovem, a vida pareceu resistir à ideia de abandonar um corpo que tinha vivido pouco. A batalha estava perdida de antemão e, além do mais, a conclusão acelerou-se quando uma anciã se agarrou aos pés do réu e puxou. Não conseguia entender a dureza daquelas mulheres que tinham ultrapassado a casa dos sessenta anos. A que poderia obedecer aquela insensibilidade, aquela ânsia, aquela falta de piedade? Talvez não fosse possível generalizar e cada caso acabasse sendo diferente. Para as mulheres, que tinha visto em Paris entusiasmadas com os estragos causados pela guilhotina, talvez aquelas execuções fossem apenas uma confirmação de que a injustiça, real ou imaginária, estava sendo punida: aplaudiam uma espécie de equidade cósmica implantada sobre rios de sangue. Para as mulheres daquele povoado, o motivo certamente era diferente: deviam estar convencidas de que quem se atrevesse a destruir a religião, o fruto do duro trabalho quotidiano, a família e a paz só poderia ser digno de uma morte rápida. Contemplou por um instante os seis corpos. Sim, estavam mortos. Quanto a isso, não havia a menor dúvida. Mesmo porque pelas pernas das suas calças, como um testemunho sujo e humilhante, escorriam fios de urina e excrementos.

Os Filhos da Luz. Baviera 1775
Steiner inclinou-se sobre os restos mortais do jovem. Custou-lhe muito reprimir uma mistura de asco e mal-estar que tinha-se agarrado ao seu pescoço como se fosse um cachecol de lã. Apesar dos anos de serviço que já tinha na polícia de Ingolstadt, não conseguia controlar uma certa aversão por cadáveres. Descobrir ladrões, vigiar suspeitos, estabelecer a cada passo seguido para urdir uma fraude engenhosa e mesmo redigir relatórios e instruir processos lhe pareciam tarefas toleráveis, aceitáveis, até divertidas. No entanto, não conseguia acostumar-se ao exame de um cadáver. Já se tinha perguntado mil vezes qual era o motivo de sua aversão e nunca conseguia elucidá-lo completamente. Por certo, havia o aspecto físico da decomposição da carne. Por mais que o catecismo se referisse a ela ou a lembrasse pontualmente na celebração da quarta-feira de cinzas, Steiner não conseguia familiarizar-se com o facto de que um corpo que ontem respirava, que até se mostrava viçoso e saudável, acabasse reduzido à condição de carniça pestilenta. Sentia isso, sentia-o na alma, mas não conseguia acostumar-se. No entanto, o seu desconforto asfixiante e indesejável não se limitava ao aspecto da decomposição de órgãos e músculos. Não, de forma alguma, quem lhe dera fosse assim. Na verdade, o que lhe causava mais desgosto era a inegável evidência de que a morte significa um final realmente terrível e que não existia a certeza de que tudo não terminasse no meio de vermes e de putrefacção. Certamente, havia os ensinamentos religiosos, e a afirmação do Credo sobre a ressurreição da carne, e até os diferentes meios oferecidos pela Santa Madre Igreja para facilitar a sorte dos condenados ao purgatório. Tudo aquilo ele conhecia e, é claro, acreditava». In César Vidal, O Crime dos Illuminati, 1958, tradução de António Borges, Relume Dumará, Ediouro Publicações S.A., 2006, ISBN 857-316-6491-3.

Cortesia de RDumará/JDACT