«O silêncio não tem contornos, assim como
o espaço não tem limites, porque, tal como o espaço, o silêncio é
consubstancial a tudo»
Os Limiares do Ruído
«(…) O silêncio é rasgado pelo ruído. As sondagens
concordam com isto: mais de dois terços dos franceses colocam o ruído no topo dos
aborrecimentos que os afligem; esta é a principal agressão, e os jornais regularmente
fazem notícia de fait-divers que têm o barulho como origem: exasperado pelo barulho
de crianças brincando, ele saca a carabina e dispara... […] Fala-se do barulho
quando ele leva pessoas normais ao crime, mas o que dizer do stress quotidiano sentido
por mais de um francês em cada dois, no seu local de trabalho, no seu lar, na rua,
um stress constante que desgasta os nervos, faz as pessoas viverem em tensão
permanente e torna a existência insuportável? Até há pouco tempo, e durante dois
anos, dormia durante as minhas estadas em Paris num apartamento no quinto
andar, com vista para um cruzamento. Rangidos de pneus, gemidos de travões, a chiadeira
das velocidades, zumbidos de arranques e detonações de todos os camiões e veículos
a travarem no limite, nada me foi poupado. Uma pequena acalmia. Entre a uma e as
cinco horas da manhã, permitia-me gozar um rápido sono, e depois de novo atordoamento,
só me restava levantar, continuar a trabalhar antes de ir praticar meditações
ao dojo zen às sete horas. E dizia a mim
próprio: mas são milhões a viverem no meio desta permanente poluição sonora,
sem darem conta disso, o hábito criando uma espécie de inconsciência, e como
nos podemos admirar perante as trombas torcidas em todo o lado, contrariadas, perante
estas fisionomias desfiguradas pela irritação e o cansaço, envenenadas por este
barulho constante, e pelo ar viciado. Vivendo no meio das árvores, depois de regressarmos
do fedor parisiense, a simples serenidade reencontrada, o ar puro respirado, parecem
divinos.
Nas cidades, o ruído está tão omnipresente
que se torna parte integrante da actividade humana, quase droga, e eu conheço
numerosos citadinos que ficaram incapazes de viver serenamente no seio da Natureza:
precisam de um fundo musical, de movimento, de discussões animadas, o silêncio relativo
do campo inquieta-os, aterroriza-os. Cheguei mesmo a encontrar casos de insónia
provocados pela falta de um rumor de fundo, o que de certa maneira tende a confirmar
que a circulação automóvel pode servir como música de embalar! O mestre Deshimaru
surpreendia-se sempre com a facilidade com que os seus discípulos parisienses se
adaptavam ao ruído, so they are more foolish than others, por isso são mais
loucos que os outros, dizia ele a rir. E assegurou-se que o seu dojo parisiense se viesse a encontrar
num pátio interior, um templo do silêncio. E se este silêncio não for senão um logro?
De facto, o ouvido humano só se apercebe de
algumas vibrações acústicas: infrasons e ultrasons, que têm frequências demasiado
baixas ou demasiado altas, escapam-nos completamente, visto que não excitam os receptores
do ouvido, sensíveis somente às vibrações de moléculas de ar cuja frequência está
limitada a uma gama larga que se situa entre os 20 e os 16.000 ciclos por
segundo. Abaixo e acima disto, não temos nenhuma sensação auditiva: logo, existe todo um universo sonoro de que nós
não nos conseguimos aperceber. Mas não temos nada que lamentar, a gama de ruídos
é actualmente suficientemente vasta: até parece que quanto mais as carências energéticas
na nossa sociedade aumentam, mais os níveis sonoros sobem. Podemos, no entanto,
tentar inverter este processo e desenvolver uma indústria rica, muito humanista,
que se esforçaria por lutar contra o ruído e os seus traumas». In
Marc Smedt, Elogio do Silêncio, 1986, Sinais de Fogo Publicações, tradução de
Sérgio Lavos, colecção XIS (livros para pensar), Público, 2003, ISBN
989-555-029-4.
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