quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Elogio do Silêncio. Marc de Smedt. «Nas cidades, o ruído está tão omnipresente que se torna parte integrante da actividade humana, quase droga, e eu conheço numerosos citadinos que ficaram incapazes de viver serenamente no seio da Natureza»

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«O silêncio não tem contornos, assim como o espaço não tem limites, porque, tal como o espaço, o silêncio é consubstancial a tudo»

Os Limiares do Ruído
«(…) O silêncio é rasgado pelo ruído. As sondagens concordam com isto: mais de dois terços dos franceses colocam o ruído no topo dos aborrecimentos que os afligem; esta é a principal agressão, e os jornais regularmente fazem notícia de fait-divers que têm o barulho como origem: exasperado pelo barulho de crianças brincando, ele saca a carabina e dispara... […] Fala-se do barulho quando ele leva pessoas normais ao crime, mas o que dizer do stress quotidiano sentido por mais de um francês em cada dois, no seu local de trabalho, no seu lar, na rua, um stress constante que desgasta os nervos, faz as pessoas viverem em tensão permanente e torna a existência insuportável? Até há pouco tempo, e durante dois anos, dormia durante as minhas estadas em Paris num apartamento no quinto andar, com vista para um cruzamento. Rangidos de pneus, gemidos de travões, a chiadeira das velocidades, zumbidos de arranques e detonações de todos os camiões e veículos a travarem no limite, nada me foi poupado. Uma pequena acalmia. Entre a uma e as cinco horas da manhã, permitia-me gozar um rápido sono, e depois de novo atordoamento, só me restava levantar, continuar a trabalhar antes de ir praticar meditações ao dojo zen às sete horas. E dizia a mim próprio: mas são milhões a viverem no meio desta permanente poluição sonora, sem darem conta disso, o hábito criando uma espécie de inconsciência, e como nos podemos admirar perante as trombas torcidas em todo o lado, contrariadas, perante estas fisionomias desfiguradas pela irritação e o cansaço, envenenadas por este barulho constante, e pelo ar viciado. Vivendo no meio das árvores, depois de regressarmos do fedor parisiense, a simples serenidade reencontrada, o ar puro respirado, parecem divinos.
Nas cidades, o ruído está tão omnipresente que se torna parte integrante da actividade humana, quase droga, e eu conheço numerosos citadinos que ficaram incapazes de viver serenamente no seio da Natureza: precisam de um fundo musical, de movimento, de discussões animadas, o silêncio relativo do campo inquieta-os, aterroriza-os. Cheguei mesmo a encontrar casos de insónia provocados pela falta de um rumor de fundo, o que de certa maneira tende a confirmar que a circulação automóvel pode servir como música de embalar! O mestre Deshimaru surpreendia-se sempre com a facilidade com que os seus discípulos parisienses se adaptavam ao ruído, so they are more foolish than others, por isso são mais loucos que os outros, dizia ele a rir. E assegurou-se que o seu dojo parisiense se viesse a encontrar num pátio interior, um templo do silêncio. E se este silêncio não for senão um logro?
De facto, o ouvido humano só se apercebe de algumas vibrações acústicas: infrasons e ultrasons, que têm frequências demasiado baixas ou demasiado altas, escapam-nos completamente, visto que não excitam os receptores do ouvido, sensíveis somente às vibrações de moléculas de ar cuja frequência está limitada a uma gama larga que se situa entre os 20 e os 16.000 ciclos por segundo. Abaixo e acima disto, não temos nenhuma sensação auditiva: logo, existe todo um universo sonoro de que nós não nos conseguimos aperceber. Mas não temos nada que lamentar, a gama de ruídos é actualmente suficientemente vasta: até parece que quanto mais as carências energéticas na nossa sociedade aumentam, mais os níveis sonoros sobem. Podemos, no entanto, tentar inverter este processo e desenvolver uma indústria rica, muito humanista, que se esforçaria por lutar contra o ruído e os seus traumas». In Marc Smedt, Elogio do Silêncio, 1986, Sinais de Fogo Publicações, tradução de Sérgio Lavos, colecção XIS (livros para pensar), Público, 2003, ISBN 989-555-029-4.

Cortesia de Público/JDACT