As Meninas
(…) A esse mesmo espectador o quadro volta
as costas: dele só se pode perceber o reverso, com a imensa armação que o
sustenta. O pintor, em contrapartida, é perfeitamente visível em toda a sua
estatura; de todo modo, ele não está encoberto pela alta tela que, talvez, irá
absorvê-lo logo em seguida, quando, dando um passo na sua direcção, se
entregará novamente ao seu trabalho; sem dúvida, nesse mesmo instante, ele
acaba de aparecer aos olhos do espectador, surgindo dessa espécie de grande
gaiola virtual que a superfície que ele está pintando projecta para trás.
Podemos vê-lo agora, num instante de pausa, no centro neutro dessa oscilação. O
seu talhe escuro, o seu rosto claro são meios-termos entre o visível e o
invisível: saindo dessa tela que nos escapa, ele emerge aos nossos olhos; mas quando,
dentro em pouco, der um passo para a direita, furtando-se aos nossos achar-se-á
colocado bem em face da tela que está pintando; entrará nessa região onde o seu
quadro, negligenciado por um instante, se lhe vai tornar de novo visível, sem
sombra nem reticência. Como se o pintor não pudesse ser ao mesmo tempo visto no
quadro em que está representado e ver aquele em que se aplica a representar alguma
coisa. Ele reina no limiar dessas duas visibilidades incompatíveis.
O pintor olha, o rosto ligeiramente virado
e a cabeça inclinada para o ombro. Fixa um ponto invisível, mas que nós,
espectadores, podemos facilmente determinar, pois que esse ponto somos nós
mesmos: o nosso corpo, o nosso rosto, os nossos olhos. O espectáculo que ele
observa é, portanto, duas vezes invisível: uma vez que não é representado no
espaço do quadro e uma vez que se situa precisamente nesse ponto cego, nesse
esconderijo essencial onde o nosso olhar se furta a nós mesmos no momento em
que olhamos. E, no entanto, como poderíamos deixar de ver essa invisibilidade,
que está aí sob os nossos olhos, já que ela tem no próprio quadro o seu sensível
equivalente, a sua figura selada? Poder-se-ia, com efeito, adivinhar o que o pintor
olha, se fosse possível lançar os olhos sobre a tela a que se aplica; desta, porém,
só se distingue a textura, os
esteios na horizontal e, na vertical, o oblíquo do cavalete. O alto rectângulo
monótono que ocupa toda a parte esquerda do quadro real e que figura o verso da
tela representada reconstituiu, sob as espécies de uma superfície, a invisibilidade
em profundidade daquilo que o artista contempla: este espaço em que nós
estamos, que nós somos. Dos olhos do pintor até aquilo que ele olha, está
traçada uma linha imperiosa que nós, os que olhamos, não poderíamos evitar: ela
atravessa o quadro real e alcança, à frente da sua superfície, o lugar de onde
vemos o pintor que nos observa; esse pontilhado nos atinge infalivelmente e nos
liga à representação do quadro.
Aparentemente, esse lugar é simples;
constitui-se de pura reciprocidade: olhamos um quadro de onde um pintor, por
sua vez, nos contempla. Nada mais que um face-a-face, olhos que se surpreendem,
olhares rectos que, cruzando-se, se superpõem. E, no entanto, essa ténue linha
de visibilidade envolve, em troca, toda uma rede complexa de incertezas, de
trocas e de evasivas. O pintor só dirige os olhos para nós na medida em que nos
encontramos no lugar do seu motivo. Nós, espectadores, estamos em excesso.
Acolhidos sob esse olhar, somos por ele expulsos, substituídos por aquilo que
desde sempre se encontrava lá, antes de nós: o próprio modelo. Mas,
inversamente, o olhar do pintor, dirigido para fora do quadro, ao vazio que lhe
faz face, aceita tantos modelos quantos espectadores lhe apareçam; nesse lugar
preciso mas indiferente, o que olha e o que é olhado permutam-se
incessantemente. Nenhum olhar é estável, ou antes, no sulco neutro do olhar que
traspassa a tela perpendicularmente, o sujeito e o objecto, o espectador e o
modelo invertem o seu papel ao infinito. E, na extremidade esquerda do quadro,
a grande tela virada exerce aí a sua segunda função: obstinadamente invisível,
impede que seja alguma vez determinável ou definitivamente estabelecida a
relação dos olhares.
O olhar opaco que ela faz reinar num lado
torna para sempre instável o jogo das metamorfoses que, no centro, se
estabelece entre o espectador e o modelo. Porque só vemos esse reverso, não
sabemos quem somos nem o que fazemos. Somos vistos ou vemos? O pintor fixa actualmente
um lugar que, de instante a instante, não cessa de mudar de conteúdo, de forma,
de rosto, de identidade. Mas a imobilidade atenta dos seus olhos remete a uma
outra direcção, que eles já seguiram frequentes vezes e que breve, sem dúvida
alguma, vão retomar: a da tela imóvel sobre a qual se traça, está talvez
traçado, desde muito tempo e para sempre, um retrato que jamais se apagará. De
sorte que o olhar soberano do pintor comanda um triângulo virtual, que define
no seu percurso esse quadro de um quadro: no vértice, único ponto visível, os olhos
do artista; na base, de um lado, o lugar invisível do modelo, do outro, a
figura provavelmente esboçada na tela virada. No momento em que colocam o
espectador no campo do seu olhar, os olhos do pintor captam-no, constrangem-no
a entrar no quadro, designam-lhe um lugar ao mesmo tempo privilegiado e
obrigatório, apropriam-se de sua luminosa e visível espécie e a projectam sobre
a superfície inacessível da tela virada. Ele vê a sua invisibilidade tornada
visível ao pintor e transposta numa imagem definitivamente invisível a ele
próprio. Surpresa que é multiplicada e tornada ainda mais inevitável por um
estratagema marginal. Na extremidade direita, o quadro recebe a sua luz de uma
janela representada segundo uma perspectiva muito curta; dela apenas se visualiza
o vão; de sorte que o fluxo de luz que ela espalha largamente banha ao mesmo
tempo, com a mesma generosidade, dois espaços vizinhos, entrecruzados, mas
irredutíveis: a superfície da tela, com o volume que ela representa (isto é, o atelier do pintor, ou a sala em que
instalou o seu cavalete), e, à frente dessa superfície, o volume real que o
espectador ocupa (ou então o lugar irreal do modelo). E, percorrendo a sala da
direita para a esquerda, a vasta luz dourada impele ao mesmo tempo o espectador
em direcção ao pintor e o modelo em direção à tela; é ela também que,
iluminando o pintor, torna-o visível ao espectador e faz brilhar como linhas de
ouro, aos olhos do modelo, a moldura da tela enigmática, onde a sua imagem,
transposta, se vai achar encerrada». In Michel Foucault, As Palavras e as Coisas,
1966, tradução de Salma Muchail, Livraria Martins Fontes Editora, 1981, São
Paulo, 2000, ISBN 853-360-997-3.
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