sábado, 19 de dezembro de 2015

A Cultura Integral do Indivíduo. Problema Central do Nosso Tempo. 1933. Bento de Jesus Caraça. «E esse grande corpo, curvado ao peso dos seus donos, segue o seu caminho sem parar, cai aqui, levanta-se além e aspira, aspira sempre a qualquer coisa de melhor»

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«(…) Demoremo-nos por alguns instantes na explanação da ideia contida neste enunciado que, receio muito, corre o perigo de, à primeira vista, vos aparecer como paradoxal. Nos primeiros grupos humanos, em que aquilo que distingue o homem dos outros animais se encontra ainda mal liberto da ganga da irracionalidade primitiva, não há lugar para mais do que para os instintos e sentimentos gregários, num estado de existência em que o indivíduo mal tem consciência de si, fundindo-se no agrupamento de que depende. É só a pouco e pouco que os mais aptos, os mais capazes pela força ou pelas qualidades de observação, se vão elevando acima do grupo, destacando-se dele, impulsionando-o e fazendo-o progredir. O esforço individual aparece assim como indispensável para o progresso do agregado que, sem ele, permaneceria sempre tal qual nasceu, como acontece, por exemplo, com certas associações de animais inferiores que hoje vemos. Mas essa acção do individual sobre o colectivo não tem apenas, infelizmente, a virtude criadora de progresso que lhe acabamos de assinalar. Bem depressa ela se manifesta com outros caracteres que formam o cortejo sinistro do domínio do indivíduo sobre o grupo, o mais capaz só subsidiariamente põe o seu esforço ao serviço do agregado; a sua primeira ideia é servir-se dessa capacidade maior para seu interesse próprio.
E aqui reside o grande drama em que, de todos os tempos, se tem debatido a humanidade, condenada a só poder evolucionar e progredir sob a acção vivificadora e fecunda de alguns dos seus indivíduos, ela vê-se ao mesmo tempo impotente para impedir que esses indivíduos se transformem em seus verdugos. Ela assiste, incapaz de o evitar, à criação das castas que são como outras tantas sanguessugas sobre o seu corpo, sem, ao menos, lhe restar a solução de as eliminar, porque isso equivaleria à sua morte no pântano estéril da incapacidade. Encarada sob este ângulo, a História da Humanidade aparece-nos como uma gigantesca luta, gigantesca no espaço e no tempo, entre o individual e o colectivo. Luta gigantesca, e trágica, e sangrenta, em que transparece um domínio quase permanente do individual sobre o colectivo e, de longe em longe, um estremecimento do grande corpo mortificado, um movimento de revolta, um triunfo efémero do colectivo, que logo cai sob outro ou o mesmo jugo pela sua incapacidade de se reconhecer e dirigir.
E esse grande corpo, curvado ao peso dos seus donos, segue o seu caminho sem parar, cai aqui, levanta-se além e aspira, aspira sempre a qualquer coisa de melhor. Mas esse qualquer coisa é vago e impreciso e, por isso mesmo que o é, leva a todos os desvios e todos os erros, pressurosamente amparados e com cuidado mantidos, precisamente por aqueles, o princípio individual em acção, a quem uma consciência colectiva forte ameaçaria no seu poderio egoísta. E assim acontece que a pobre humanidade, não abdicando da sua aspiração confusa a uma felicidade e unidade superiores e não encontrando em si, no seu corpo chagado, de que alimentar a pureza da sua chama interior, renuncia a si própria e vai procurar fora os elementos que dêem alimento e vida a essa aspiração e pureza. As castas depressa reconhecem quanto esse sentimento de evasão do homem as pode servir e, daquilo que é puro desejo de elevação do espírito, fazem, a breve trecho, a adoração de um ídolo; deformou-se um sentimento, mas enraizou-se mais o poder. Abre-se assim um grande capítulo da História, capítulo que não é, de todos, o menos dramático, o das concepções religiosas. Sobre a terra paira, como uma consequência necessária da luta entre o individual e o colectivo, uma ideia vagabundeante e de encarnações polimorfas, aqui, um deus feroz do deserto, além, uma corte de deuses amáveis de uma península ridente, mais adiante, sobre uma estrutura social absurda, um deus absurdo, infinita bondade e infinito amor criando e regendo um mundo onde existe a malquerença e a injustiça.
A luta entre o indivíduo e a colectividade não se trava sempre no mesmo plano de vida nem com o mesmo grau de amplitude. De época para época, os seus aspectos variam, não porque no fundo a sua essência mude, mas porque as circunstâncias características dessa época lhe fazem tomar uma aparência diversa, as formas da vida são várias e permitem diferentes transposições de plano do mesmo fenómeno fundamental. Uma vez, a revolta elementar e cega dos que têm fome, outra, uma tentativa de unificação política de um grande império, depois, o assalto a esse mesmo império e o seu desmembramento, mais tarde, a reivindicação dos direitos políticos do cidadão, de várias maneiras, e com fisionomias locais e temporais determinadas, nos aparece esse grande movimento que permanece sempre uno na sua significação profunda. Evidentemente, não pretendo com isto afirmar que todo o fenómeno da vida social, no extremo da sua minúcia, seja uma manifestação dessa luta, mas nem por isso nas suas linhas gerais deixa de ser assim, do mesmo modo que a existência de cordilheiras de montanhas não impede a esfericidade da terra». In Bento de Jesus Caraça, 1933, União Cultural Mocidade Livre, Cadernos da Seara Nova, 1939.

Cortesia de Seara Nova/JDACT