quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Os Cavaleiros da Cruz Vermelha. Ademir L. Silva. «… entre a França e a Espanha, com os Pirenéus ao fundo, onde se tornam uno os quatro principais itinerários franceses, no chamado Caminho Francês: conhecido também como O Estranho Caminho de Santiago»

Cortesia de wikipedia

O signo da peregrinação
«(…) Ainda que os motivos da eclosão do movimento cruzado pela libertação da Terra Santa consistam em uma complexa teia de relações políticas, económicas, culturais, étnicas e religiosas, cuja explicação meramente satisfatória demandaria centenas de páginas, pode-se afirmar, grosso modo, que um signo em especial serviu de inspiração para os esforços dos guerreiros cristãos: o signo da peregrinação. Não é por acaso que sendo a palavra cruzada derivada do latim cruciata, do espanhol cruzada e do italiano cruzeta, uma designação criada a posteriori, só surgindo em francês no século XVII, a expedição era chamado por seuscontemporâneos, dentre outras formas, de peregrinatio contra paganos, ou seja: peregrinação contra pagãos. Sendo um equivoco imaginar as populações europeias medievais como estáticas, presas às suas regiões de origem, a peregrinação de penitência era o primeiro e mais nobre dos motivos para se por o pé na estrada. Semelhantemente ao profeta Maomé, que colocou entre os princípios fundamentais do islamismo a obrigação impreterível do seu crente visitar a cidade de Meca ao menos uma vez na vida, alguns teólogos cristãos afirmavam ser justo que o seguidor de Jesus de Nazaré também se dispusesse a gastar a sola de sua sandália em nome de sua fé; também ao menos uma vez na vida. Estando claro que não se tratava de uma obrigação dogmática, ao contrário do caso muçulmano, e sim de uma sugestão, parece não existir dúvidas de que os cristãos acatavam-na com alegria e fé. Apesar da caminhada do peregrino remeter-se directamente à Via Sacra, com tudo o que ela simboliza em sofrimento e provação, para tornar-se agradável aos olhos de Deus através da dor, não se pode afirmar que a remissão dos pecados fosse o único motivo da existência das peregrinações. Peregrinava-se pelos mais diferentes motivos. Para pedir por prosperidade material, implorar pela realização de milagres de cura, pagar promessas por graças alcançadas, meramente orar desinteressado, ou ainda, suponho não ser contraditório, pelo simples prazer de conhecer outras paragens, outras paisagens.
Definitivamente a peregrinação fazia parte do quotidiano do medievo. Além de possuir o seu peso religioso, constituía-se num ritual social importante. Mesmo aqueles indivíduos que se encontravam doentes ou ocupados demais para irem por si mesmos, pagavam assalariados para fazerem o trajecto por substituição. Estes suplentes caminhariam, orariam e, algumas vezes, se flagelariam em nome dos contratantes. Os santuários de peregrinação espalhavam-se por toda cristandade. Na França os mais visitados eram os dedicados ao culto da Virgem, mas de modo geral os peregrinos preferiam aqueles que ofereciam a visão de alguma relíquia rara ou o túmulo de um santo ou mártir prestigiado. Elementos palpáveis, por assim dizer, e portanto mais atraentes do que verdades dogmáticas. As freguesias que possuíssem um bom chamariz progrediam rapidamente. Se já na Idade Média o dinheiro era o sangue da cidade, o seu fluido vital, os peregrinos representavam uma rendosa fonte de receita. Em vista disto as igrejas e abadias concorriam ferozmente entre si pela atenção dos viajantes. Para atender este mercado incipiente formou-se na Europa medieval uma verdadeira indústria de comércio e falsificação de relíquias, com intrincadas relações comerciais que iam desde Roma à Jerusalém, passando por Constantinopla e Alexandria. Pelo que se sabe não parecia existir muito bom senso no ramo de compra e venda de relíquias sacras. Quanto mais extravagantes fossem as peças, melhor. Fragmentos da cruz de Cristo, fios de cabelos do Nazareno, sudários santos, o crânio de João Baptista, a Arca da Aliança ou o cobiçado Santo Graal das lendas arturianas eram artigos correntes. Não era raro que mais de uma diocese afirmasse possuir a mesma peça. O anedotário sobre este assunto é inesgotável. E quanto mais distante se ia, maior a penitência e por conseguinte maior o valor do sacrifício junto à contabilidade divina. Por isto, em contrapartida as numerosas jornadas de curta distância, feitas em pouco tempo e sem grandes esforços ou gastos, existiam as grandes peregrinações. Viagens cuja realização eram considerados feitos extraordinários. Dentre estas, três se destacavam: o Caminho de Roma, o Caminho de Santiago de Compostela e o Caminho de Jerusalém.
Em Roma a grande atracção era rezar sobre os túmulos do apóstolo Pedro, a Pedra, de Paulo de Tarso e dos primeiros mártires assassinados durante a perseguição romana ao cristianismo primitivo.
O viajante que se dirigia a Cidade Eterna era conhecido como romeiro e o seu símbolo de identificação era a cruz, para lembrar tanto o suplício de Jesus de Nazaré quanto a crucificação de cabeça para baixo de Pedro, na colina do Vaticano. Porém, apesar de ser a sede da Igreja, a rota até Roma não era a mais popular da Europa. Em função do seu alto grau de organização, em grande parte a cargo da poderosa abadia de Cluny, o mais procurado era o que levava até Santiago de Compostela, na região espanhola da Galiza. Na verdade os seus itinerários eram os mais diversos: iam da chamada Via Francígena, o caminho italiano, às rotas marítimas, seguidas pelos flamengos, britânicos e escandinavos, que percorriam em terra o Caminho Inglês, de Farol e A Corunha até Santiago. Existia também o Caminho Português, que ia de Lisboa a Compostela cortando de sul a norte as terras lusitanas, passando por Porto até Barcelos, Ponte de Lima e Valença do Minho, onde se cruzava o rio Minho, entrando em domínios galegos. Mas a mais importante das rotas começa na fronteira entre a França e a Espanha, com os Pirenéus ao fundo, onde se tornam uno os quatro principais itinerários franceses, no chamado Caminho Francês: conhecido também como O Estranho Caminho de Santiago». In Ademir L. Silva, Os Cavaleiros da Cruz Vermelha, Séculos XII e XIII, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Goiás, Faculdade de CHeFilosofia, Goiãnia, 2003.

Cortesia de FdeCHeFilosofia/UniversidadeFGoiás/JDACT