«(…) Narouz ainda respondeu com uma
gargalhadinha mefistofélica. Que hei de fazer?, disse ela com uma resignação
irónica enquanto o intendente se aproximava com dois cavalos. Montaram e
tomaram o caminho de casa. Mandando o intendente avançar adiante com a
lanterna, Leila aproximou o seu cavalo do cavalo de Mountolive, para que os
seus joelhos se tocassem e para que o contacto dos seus corpos apaziguasse em
parte a sede dos sentidos. Eram amantes havia apenas dez dias, mas para o jovem
Mountolive esses dez dias tinham sido uma eternidade de alegria e desespero. A
sua educação inglesa não o tinha preparado para as subtilezas do sentimento. A
despeito da sua juventude tinha já assimilado perfeitamente todas as preciosas
lições que lhe haviam de permitir viver em boa sociedade sem graves problemas;
mas às suas emoções pessoais tudo quanto podia opôr era o silêncio taciturno de
uma sensibilidade nacional quase completamente anestesiada: uma educação à base
de reticências e falsos pudores. Educação e sensibilidade raro se encontram a
par, embora a lacuna se possa ocultar sob as regras do bem viver e das
conveniências. Da paixão tinha apenas conhecimentos literários; enunciava
opiniões quando o tema caía em conversa; mas considerara-a sempre uma realidade
estranha ao seu destino; e agora lá estava ela, animando secretamente a sua vida
de escolar precocemente amadurecido, vivendo uma vida autónoma por detrás da
fachada de boas maneiras e das actividades quotidianas, das conversas e das
amizades do dia a dia. Nele o humano dera frutos antes de o próprio homem
interior ter florescido. Leila voltara-o do avesso como se volta um velho saco,
espalhando o conteúdo em confusão. Mountolive admitiria sem dificuldade não
passar de um franganote que já tinha entretanto esgotado todas as suas
reservas. Descobria quase com indignação que tinha finalmente encontrado
qualquer coisa por que se sentia até capaz de morrer, qualquer coisa cuja
própria crueza continha em si uma mensagem alada que feria vivamente o seu espírito.
Mesmo nas trevas sentia-se corar. Era absurdo. Amar era absurdo, era como ser derrubado. Que diria sua mãe,
pensava ele, se os visse assim cavalgando entre os vultos das palmeiras, perto
do lago onde se reflectia o crescente da Lua, de joelhos colados? Sentes-te
feliz?, murmurou ela, e Mountolive sentiu os lábios de Leila acariciarem-lhe o
pulso.
Os amantes não podem dizer nada que
já não tenha sido dito e calado um milhão de vezes. Os beijos foram inventados
para traduzir esses mil nadas em ferimentos. Mountolive, repetiu ela. Meu
querido David. Sim... Estás tão tranquilo. Julgava que dormias. Mountolive
enrugou a testa, pesquisando a sua natureza íntima. Estou a reflectir,
respondeu. Sentiu novo beijo no pulso. Querido! Querida! Continuaram assim, de
joelhos colados, e depressa avistaram a casa, solidamente construída no meio de
uma rede de diques e canais de água doce que fragmentava o estuário. O ar
pulsava agitado pelas asas dos morcegos. Todas as varandas do primeiro andar se
encontravam vivamente iluminadas; o inválido, na cadeira de rodas, o olhar
ciumento cravado na noite, esperava-os. Atingido por uma doença obscura que o
ia matando aos poucos, o marido de Leila via a doença agravar a grande
diferença de idades que os separava; enquanto ela tinha apenas quarenta anos, e
ninguém lhos dava, ele ia para além dos sessenta A enfermidade encerrava-o num
sudário de cobertores de onde emergiam duas mãos longas e trémulas. As suas feições
rudes e taciturnas encontravam-se reproduzidas no filho mais novo e tinha a
cabeça constantemente inclinada sobre a espádua; vista a certa luz lembrava
aquelas máscaras carnavalescas que são levadas na ponta de varas. Resta
acrescentar que Leila amava-o. Leila
amava-o. No silêncio da sua mente, Mountolive nunca era capaz de pronunciar
esta frase sem guinchar como um papagaio. Como era possível? Interrogava-se mil
vezes. Como era possível?
Ouvindo o tropear dos cavalos no
pátio, o marido fez rolar a cadeira e aproximando-se da balaustrada perguntou
timidamente: és tu, Leila? A sua voz era a de uma criança muito velha, pronta
para ser ferida pelo sorriso quente que ela lhe lançou para o alto, pela bela voz
de contralto que lhe respondia confundindo a submissão oriental com aquela espécie
de consolação que só uma criança e capaz de compreender. Querido. E subiu a
correr a escadaria para beijá-lo. Aqui estamos, sãos e salvos. Mountolive
desmontava lentamente, ouvindo o suspiro de alívio do doente. Demorava-se a apertar
uma correia para não ver o beijo que trocavam. Não era ciumento, mas a
incredulidade verrumava-o e feria-o. Nessa ocasião odiava a sua juventude, a
sua tacanhez e o sentimento de ter sido violado. como sucedera tudo aquilo? Sentia-se
a um milhão de quilómetros da Inglaterra. Separara-se do seu passado como uma
serpente após a muda. A noite estava cheia de aromas fragrantes de jasmim e rosa.
Mais tarde, se ela viesse procurá-lo ao quarto, encontrá-lo-ia imóvel, mudo e incapaz
de pensar, tomando nos braços aquele corpo estranhamente jovem, quase sem
desejo nem remorsos; sentia os olhos fecharem-se como um homem imóvel debaixo
de uma cascata gelada. Subiu lentamente a escada; graças a ela, sabia agora que
era belo e aprumado». In Lawrence Durrell, O Quarteto de
Alexandria, Mountolive, 1958, Publicações dom Quixote, tradução de Daniel
Gonçalves, 1960/1961, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.
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