domingo, 20 de dezembro de 2015

O Primitivo Teatro Português. Luiz Francisco Rebello. «’Seria assim o arremedilho a célula originária do teatro português’, a partir da qual se formou, no dizer de Teófilo Braga, o fio da tradição dramática entre nós, juízo praticamente adoptado…»

wikipedia e jdact

O sacro e o profano
«(…) Assim como na antiguidade clássica o teatro nasceu do culto dionisíaco, assim também as origens do teatro moderno aparecem, por entre as brumas da Idade Média, confundidas com a ritologia cristã, embora nela se não esgotem. Os estudos magistrais de um Karl Young e de um Gustave Cohen estabeleceram definitivamente essa genealogia, que poderá surpreender na medida em que se recordem as perseguições sistemáticas, os contínuos ataques desencadeados pela Igreja contra os cómicos e o teatro. No ano de 1207 (para não falar já de proscrições e anátemas anteriores, como aqueles que em 314 o Concílio de Arles fez desabar sobre jograis, saltimbancos e actores) o papa Inocêncio III proibia, no interior dos templos, todas as manifestações que não se revestissem de um carácter estritamente litúrgico. No mesmo século, em Espanha, a Lei das Sete Partidas de Afonso X, o Sábio, que reinou de 1252 a 1284, do mesmo passo que vedava aos clérigos fazerem jogos de escárnio, assistirem a eles ou consentirem que se fizessem nas igrejas, autorizava a representação do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, em que se mostra como o anjo veio aos pastores e lhes disse como era Jesus Cristo nascido; e outrossim de como os três reis magos o vieram adorar; e da sua ressurreição, que mostra como foi crucificado e ressurgiu ao terceiro dia: tais coisas como estas, que movem o homem a fazer bem e a haver devoção na fé, podem fazê-las, mas devem fazê-las compostamente e com grande devoção. Daqui resulta que a condenação dos theatrales ludi se não estendia à evocação dramática, ou, mais propriamente, para-dramática, dos dois grandes mistérios da cristandade: a Incarnação e a Ressurreição. Ora, conhecidas as relações existentes entre a corte do monarca castelhano, que foi sogro de Afonso III e avô de Dinis I, e a portuguesa, ambas as quais serviram de berço à poesia trovadoresca, de estranhar seria que tais representações não tivessem lugar também nas catedrais e nos mosteiros lusitanos, e, seguindo a evolução natural do drama litúrgico medievo, do altar-mor não transitassem para o adro e deste para a praça pública, até se autonomizarem por completo.
Foi, de resto, a interdição de jogos profanos no interior dos templos, aliada ao declínio do primado espiritual da Igreja, que deu causa à secularização do teatro, o qual, liberto dos formalismos rituais, assumiu uma feição predominantemente popular, de harmonia com as exigências do novo público iletrado a que passou a dirigir-se. Assim começou, por um fenómeno de cissiparidade frequente na história das literaturas, a estabelecer-se uma separação entre o drama hierático e o drama laico, aquele circunscrito às cerimónias eclesiásticas, confundido com o culto, este tomando de início como pretexto festividades religiosas mas a breve trecho afastando-se delas, quer pela sua forma, quer pelo seu espírito. Se às manifestações de um e de outro acrescentarmos as de um teatro áulico (ou aristocrático, como alguns historiadores preferem chamar-lhe), radicado na corte e destinado por via de regra a comemorar e ilustrar acontecimentos festivos, teremos enunciado as várias faces do triedro sob que o teatro medieval se nos apresenta. Nem sempre essas três faces se mostrarão rigorosamente extremadas, antes se interpenetram as mais das vezes: o drama profano não esquece facilmente as suas origens sagradas, e as representações áulicas mantêm estreitos pontos de contacto com as duas outras. Assim também, como iremos ver, aconteceria entre nós.

Primeiras manifestações teatrais: o arremedilho
O testemunho mais antigo que se conhece de manifestações teatrais na Idade Média portuguesa transporta-nos quase aos primórdios da nacionalidade: ao ano de 1193, para maior exactidão. Trata-se de uma carta (que se conserva na Torre do Tombo), datada do mês de Agosto desse ano, confirmativa de uma doacção feita pelo rei Sancho I da propriedade de umas terras em Canelas, lugar da freguesia de Poiares do Douro, ao jogral Bonamis e a seu irmão Acompaniado, em paga de um arremedilho que estes haviam representado na sua corte; esta doacção foi confirmada em 1222 por Afonso II a Bonamis e aos herdeiros de Acompaniado, entretanto falecido. Diz, textualmente, esse documento, transcrito por Sousa Viterbo no seu Elucidário: nos mimi supranominati debemus Domino Nostro Regi pro reboratione unum arremidilum. Seria assim o arremedilho a célula originária do teatro português, a partir da qual se formou, no dizer de Teófilo Braga, o fio da tradição dramática entre nós, juízo praticamente adoptado por todos os estudiosos, com a excepção única de Luciana Stegagno Picchio, que o não aceita como um género dramático português específico, equiparando-o às imitações jogralescas, comuns a toda a Europa medieval. O que, porém, não invalida a sua natureza virtualmente dramática, a que a origem jogralesca não constitui obstáculo. Muito pelo contrário: os jograis ou segréis, que prolongam a tradição dos antigos mimos e histriões, foram, na Idade Média, e até que a invenção da imprensa e a difusão do livro reduzissem a esfera da sua actividade, tornando-lhes praticamente inútil a função, os agentes divulgadores da literatura oral, falada e cantada, o que os obrigava a serem, antes de mais nada, actores.
O jogral, escreve Menéndez Pidal, conta as suas histórias pensando sempre no auditório que tem na sua frente, ao qual muitas vezes se dirige expressamente. Nele se confundem, pois, o autor e o actor: e tanto o vemos recitando e cantando, com o auxílio da pantomima, da dança e do diálogo, para as tornar mais convincentes, as histórias e fábulas do seu extenso repertório, em que se misturavam antigas lendas, sátiras e epigramas sobre acontecimentos ou personagens actuais, narrativas de peregrinos regressados de Jerusalém, vidas de santos e de heróis, cantares de amor e gestas de cavalaria, nas festas populares como nas cerimónias religiosas ou ainda perante os senhores feudais nos seus castelos e o monarca no seu palácio». In Luiz Francisco Rebello, O Primitivo Teatro Português, Instituto de Cultura Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Oficinas Gráficas da Livraria Bertrand, 1977.

Cortesia do ICamões/JDACT