quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

A Sombra do Templário. Século XIII. Núria Masot. «Não te preocupes, tenho um bom amigo na Casa, um de toda a confiança. Mas preciso que me faças um favor, mantém os ouvidos bem abertos, informa-te se alguém me viu chegar e fala com a minha cunhada»

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Barcelona
«(…) Umas pancadas na porta vieram tirá-lo do seu ensimesmamento. Não fazia a mais pequena ideia de há quanto tempo ali se encontrava, sentado ao lado do cadáver. Mas assim que as pancadas lhe perturbaram o estado de espírito, pôs-se de pé devagar, como se o corpo lhe pesasse e encaminhou-se para a porta. O seu amigo Moshe, o dono do talho, estava diante dele com um ar de desculpa no olhar. Abraão, lamento imenso o meu comportamento de há bocado, não tinha o direito de julgar-te tão severamente, peço-te perdão. O seu olhar exprimia um tal arrependimento que o médico não pôde impedi-lo de entrar, divertido com os escrúpulos do amigo. Entra, velho judeu rabugento, estava a pensar ir ter contigo daqui a pouco. Como está o teu doente? Conseguiste que melhorasse? Precisas de alguma coisa? Moshe não sabia como desculpar-se. Morreu há bocadinho. Pouco pude fazer contra um veneno tão poderoso como o que usaram para lhe roubar avida, respondeu Abraão, convidando-o a entrar na pequena divisão que lhe servia de sala de jantar. Veneno!, exclamou Moshe. Abraão contou-lhe a história sem lhe ocultar coisa alguma, precisava de falar com alguém e conhecia Moshe desde sempre. Apesar de ser um pouco mais novo do que ele, tinham sido criados juntos desde crianças e tinham mantido sempre uma fiel amizade. Moshe fora sempre um conservador, como o pai, seguira a tradição familiar no ofício e casara-se com quem a família decidira, apesar de Abraão ter sempre sabido que ele estava profundamente apaixonado pela sua irmã Miriam e que esta lhe correspondia. Mas aqueles infelizes jovens não se atreveram a enfrentar as consequências e os resultados não haviam sido bons. A esposa de Moshe era uma mulher autoritária e orgulhosa que o desprezava, e a sua querida irmã Miriam tinha por marido um rabino rígido que lhe fizera desaparecer do rosto o sorriso.
O mundo ordenado e rotineiro de Moshe sofreu um sobressalto ao ouvir a história do amigo. Admirava Abraão desde criança, sabia que possuía a amizade de um homem sábio que o respeitava e lhe queria. Deus esteja connosco, Abraão! Meteste-te num rico sarilho. E este pobre homem, morto em tua casa. Que vamos nós fazer? Abraão sorriu ao ouvir o amigo usar o plural, imerso na história, realmente preocupado com a sua integridade. Tu vais voltar para casa e não dizes nada a ninguém. Se te perguntarem por mim, dirás que voltei a partir para tratar de um doente e que não sabes quando volto. - Mas Abraão as pessoas podem pensar que não regressaste da Palestina, o melhor seria... Não, Moshe, atalhou o médico, é perfeitamente possível que alguém me tenha visto chegar ao Call, e sabes como correm as notícias neste bairro, parece que ninguém te vê, e acabas por ser o assunto principal de conversa na sinagoga. O melhor é cingirmo-nos o mais possível à verdade. Quanto a mim, farei o que Guils me pediu antes de morrer: irei à Casa do Templo e contar-lhes-ei a história. Tens razão, é o melhor, assentiu Moshe, convencido. É uma sorte que toda esta confusão dependa do Templo e não do aguzil real. Mas Abraão, já pensaste com quem vais falar? Não podes apresentar-te ali e dizer tenho um morto que vos pertence... Não te preocupes, tenho um bom amigo na Casa, um de toda a confiança. Mas preciso que me faças um favor, mantém os ouvidos bem abertos, informa-te se alguém me viu chegar e fala com a minha cunhada. Podes contar-lhe que já cheguei, mas que uma urgência médica me obrigou de novo a partir. Não dês demasiadas explicações, ser demasiado loquaz é a maneira mais fácil de apanhar um mentiroso.
Abraão mandou embora o amigo, dando-lhe as últimas instruções. Depois entrou de novo no quarto onde Guils já não sentia nem dor nem tristeza. Aquela forma humana que o lençol escondia empreendera uma viagem que ninguém podia partilhar. Revistou-lhe novamente as roupas, tacteando cada centímetro de tecido, procurando nas costuras e nos bolsos, mas não encontrou nada. Pensou que era possível que tudo aquilo fizesse parte de uma alucinação provocada pelo veneno, mas qualquer coisa lá no íntimo lhe dizia que era verdade. Uma das razões era a própria morte de Guils, o seu assassinato. Era preciso uma boa razão para acabar com a vida de um homem e a existência daquele embrulho podia ser uma causa legítima para matar». In Núria Masot, A Sombra do Templário, colecção Enigmas da História, Sicidea, 2007, ISBN 978-84-611-4998-8.

Cortesia de Sicidea/JDACT