«(…)
E tantas vezes sonhou acordada, recordou, durante os passeios que davam juntas
pela muralha, avistando o mar sadio e belo em dias de calor e sol radiante,
escutando com reverberação as descrições de dona Catarina sobre Portugal, e
seus palácios e festas grandiosas, esperando ardentemente que no dia em que ela
partisse com Vasco também a levaria consigo, para servi-la e dormir sob o
esplendor rico da corte, e passear por Lisboa como mulher livre e independente,
justamente recompensada pelo sacrifício prestado no ultramar ao lado dos
nobres... Mas agora aquela mão fraca e quebradiça tudo varrera, dispersando os
seus sonhos como nuvens de fumo, intangíveis e fugidias. Ingrata, maldita,
falsa!, rosnava, entredentes, enquanto caminhava muito direita e de olhos
semicerrados, culpando-se por todo o empenho que colocara no serviço à
condessa, e que no fim de nada lhe valera. E tão absorvida estava no seu
exercício de ódio que nem deu conta de um vulto que surgiu pela sua esquerda e
se intrometeu no caminho, agarrando-lhe o braço com força, ao que respondeu com
um grito de susto. Shh! Escusas de gritar que aqui ninguém te vem acudir, disse
uma voz arranhada de homem, mantendo os dedos cravados no seu braço a ponto de
lhe causar dor. Aqui não há soldados que te valham. De tal forma estava com a
cabeça distraída com a dispensa da condessa que não dera conta das ruas que ia
percorrendo, acabando por chegar ao lugar mais perigoso da vila, cuja fama se
estendia para além das muralhas. Era uma casa amarela, recuada numa viela
escondida e apertada, enterrada no solo desnivelado e de paredes de adobe
esburacadas e com aspecto de ruína. Sobre ela e sobre seu dono contavam-se
histórias às crianças para lhes meter medo, e eram conhecidos os lamentos de
dor nocturnos que saíam das janelas estreitas ao nível da rua, gritos de sofrimento
de escravos aprisionados no calabouço que ele construíra no subsolo. Se te
portas mal levo-te ao Álvaro Dias para te fechar na cave, ouvia a garotada que
crescia na vila. Pois que era má rês, diabo feito gente, o maldito do ferreiro
de Arzila.
Larga-me,
não tenho medo de ti, peçonhento!, atirou-lhe Amina, sacudindo-se como um gato
selvagem, acabando por libertar-se. Rica surpresa, dizia por seu lado o
ferreiro, passando-lhe a mão pelo rosto, ao que a aia recuava, com um esgar de
desprezo no rosto. Sabes que tenho andado para te falar há alguns dias? Só me
faltava a oportunidade, e não é que te vou encontrar mesmo à porta de casa? Parece
que me leste o pensamento. Era um homem grande e sem pescoço, de franja sobre a
testa e com uma bocarra enorme e de lábios grossos e arroxeados, de onde
surgiam os dentes negros e apodrecidos de cada vez que sorria. Falava
lentamente, com um vozeirão arrastado, e os olhos, escuros e grandes, pareciam
sempre admirados, esquadrinhando tudo em seu redor com doentia atenção. E
esfregando as enormes manápulas uma na outra, encolhia-se e aproximava-se de
Amina, ávido e bruto. Sabes que já ouvi a novidade. Então quer dizer que a tua
estimada velhota está de partida. Os condes voltam à terra. Vão-se estes mas
vêm outros, respondeu a aia por seu lado, indiferente, de mãos postas nas
ancas. Pois não duvido, continuou Álvaro Dias, olhando por cima dos ombros para
ver se havia alguém na rua, que permanecia deserta. A chuva entretanto cessara,
e o nevoeiro adensara-se, pairando sobre os telhados e conferindo à atmosfera
um ambiente lúgubre e desolado. Mas que eu saiba, a nova condessa já deve
trazer lá do reino uma aia ou duas, não será? E olha que devem ser cristãs de
berço, e de pele branquinha e perfumada. Ou estavas em crer que depois destes
condes, alguém ia querer uma mourisca escura como tu?
O
diabo que te carregue, ripostou Amina, cuspindo no chão aos pés do ferreiro. Da
minha vida cuido eu, e não preciso que se preocupem com ela, muito menos um cão
preto como tu. Toma cuidado, disse Álvaro Dias, desta vez sem sorrisos, apontando-lhe
o indicador direito. Assim que os velhos se marcharem, tu não vais ser mais do
que uma moura metida dentro de Arzila, e ainda por cima pouco apreciada por
estes lados. Julgas que mandas muito mas espera até os condes saírem daqui. És
vendida aos xarifes em três tempos, e esses não te vão perdoar certamente por
teres andado a beijar a cruz. Ou então compro-te eu, e então vais direitinha
para o buraco, disse, fazendo um gesto com o polegar para indicar a casa atrás
de si. Tenho lá vários, acorrentados às paredes, tísicos e alguns quase cegos.
Posso ser cão preto, mas também posso vir a ser teu dono. Amina preparava-se
para responder com insultos ao ferreiro, mas calou-se por alguns momentos,
enquanto o considerava, pensativa. E então perguntou-lhe, desconfiada: Mas então
o que é que tinhas para me dizer? Desembucha de uma vez que faz-se tarde e se
chego depois dela vou ter muitas perguntas para responder. Álvaro Dias fez-se
então muito sério, e baixando a voz, respondeu: Tenho uma proposta para te fazer.
Assim
que o ferreiro começou a explicar a sua ideia, logo Amina compreendeu que não
era a única ameaçada pela partida dos condes. Aos poucos começou a perceber que
o próprio Álvaro Dias vivia aterrorizado ante a ideia de um novo capitão em
Arzila. Tinha conseguido alcançar um entendimento com Vasco que lhe permitia
ter o seu negócio de escravos, a sua botica infernal de maus-olhados,
esconjuras e feitiços, e podia praticar toda a espécie de vícios e tropelias
sobre os demais cidadãos sem nunca por isso ser açoitado. Essa liberdade, que
por si só constituía grande mistério na vila, advinha da grande qualidade do
ferreiro como atirador de espingarda, pelo que era um elemento fundamental
tanto nas caçadas como nas corridas aos mouros. E por esse motivo o velho conde
sempre fingiu desconhecer toda a sorte de práticas obscuras que se passavam na
casa amarela, em virtude do valor inestimável do seu dono na guerra. Mas se tal
beneplácito acabasse de repente, o futuro nada de bom auspiciava a Álvaro Dias».
In
Pedro L. Torres, Isabel, A Condessa Cercada, Saída de Emergência, 2014, ISBN
978-989-637-660-4.
Cortesia
de SEmergência/JDACT