«Consiste o livre-arbítrio em
voluntariamente cumprir o fado». In Agostinho da Silva
31
de Março de 1738
«(…) E este sermão enfadonho
ouvia-o eu vezes e vezes sem conta, por estar prometida ao seu primogénito, mas
sobretudo por ser bonita e de sangue quente. Santa Leonor não suportava ver-me
entrar nos salões e roubar as atenções de todos os homens. Não suportava os
meus vestidos desenhados para tornear as curvas sinuosas do meu corpo. Não
suportava os meus decotes generosos e as jóias coloridas que colocava sobre a parte
nua dos seios, como chamariz para o abismo. Não suportava que os homens de
todas as idades tivessem convulsões internas ao ritmo das minhas risadas, que
me balançavam as carnes. Não suportava os meus gestos dengosos e a minha boca
aberta em sorrisos que transpiravam pecado. Toda eu era volúpia, da cabeça aos
pés, desde que me conhecera. Como controlar então o que me era tão natural? E
porquê? Porque o Deus de Santa Leonor lhe mandava dizer, através dos seus
confessores jesuítas, que era errado? O meu Deus fizera-me assim. Dotada deste
carisma natural e desta sensualidade incontrolável. Por isso teria agora de me
ter no seu mundo com esta forma e este feitio, fossem quais fossem as
consequências da sua criação. Hoje deixarei de ser virgem, Pelágia.
Pelágia olhou-me com a sua grande
boca aberta, esquecendo a apresentação de armas que os granadeiros e
sargentos-mores executavam, na arena. Era um espectáculo imperdível, mas a
minha decisão ainda o era mais. Enlouqueceste, Teresa? Tens de casar primeiro.
E se engravidas? É, da maneira que casarei mais depressa. Isso é uma provocação
à tua futura sogra, não é? E o olhar de Pelágia lançou-se sobre dona Leonor,
que estava noutra bancada aveludada, com as filhas Mariana, prometida ao conde
de Atouguia, e Leonor, mais tarde marquesa de Alorna. Com elas ainda Maria Ana
Leopoldina, casada com Manuel Sousa Calhariz, capitão das guardas alemãs, com
quem dona Leonor trocava segredinhos discretos. Já percebeste que ela não tira
os olhos de ti. Parece que está a adivinhar as tuas perversas intenções...,
disse-me Pelágia, divertida com toda a situação, que animava mais o seu
espírito do que um cortejo de fidalgos.
Mas não, a santa Leonor não tirava
os olhos de mim por desvendar as minhas intenções. Ela não tirava os olhos de
mim porque havia muitos outros olhos, para além dos dela e dos do filho dela, a
fixarem-se nos meus. E um deles parecia-lhe o mais perigoso de todos. Era o do
príncipe José, a quem todos cumprimentavam respeitosamente, depois do rei e da
rainha. Era a sua esposa que fazia anos naquele dia, mas o príncipe fora
atraído pelo meu riso, e agora não conseguia desviar as atenções de mim, como se
eu o tivesse enfeitiçado. Os olhares furtivos só não eram evidentes para todos
porque na arena o cortejo de cavaleiros desviava as atenções. Mas à marquesa de
Távora, a santa pispineta e perspicaz, nada lhe escapava. Sobretudo nada que
tivesse que ver comigo. E os olhares do príncipe José, conhecido pelas suas
aventuras amorosas, perturbavam a santa marquesa, cujo sexto sentido deixava já
antever todas as desgraças que, daqueles olhares, poderiam advir.
Os olhares só sossegaram quando
entraram na arena os guias com os seus cavaleiros, num cortejo memorável
destinado a homenagear a família real. O príncipe José centrou as atenções no
meu irmão Francisco Assis, que liderava a terceira guia, e em todos os outros
emplumados que exibiam os seus brasões a todos os presentes. Francisco era sem
dúvida o homem mais bonito e elegante do cortejo, e lia-se nos seus olhos
altivos o orgulho que sentia no brasão que lhe fora confiado, por via do
casamento. Os Távoras eram uma das famílias mais antigas do país, cujas origens
remontavam a um dos filhos de Ramiro II, rei de Leão. O casamento entre Álvaro
Pires Távora, 2.º senhor do Mogadouro, com dona Inês Guerra, no século XIV,
possibilitou que a família se dissesse descendente de Afonso Henriques,
conquistando dessa forma mais poder, títulos e património para a sua casa, a
que também não foram alheios, para que sejamos justos, os inúmeros serviços
militares e administrativos prestados aos reis». In Sara Rodi, Teresa Távora, A
Amante do Rei, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-482-6.
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