quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Para a Ficção. Textos Críticos. Maria Madalena das páginas da Bíblia. Organização de Salma Ferraz. «O Concílio de Niceia, realizado em 325 d.C., foi um dos mais complexos debates teológicos da história do Cristianismo. Neste Concílio, foi realizada a separação dos Evangelhos Canónicos e dos Evangelhos Apócrifos»

Cortesia de wikipedia e jdact

Maria Magdalena. A anti-odisseia da discípula amada
«(…) E qual é a face de Madalena nos Evangelhos Apócrifos, do grego apókriphos? E nos Evangelhos Gnósticos? Lembramos que o significado do termo apócrifo com o tempo foi-se modificando: de secreto passou a significar autenticidade duvidosa, e, posteriormente, espúrios ou suspeitos de heresia. Os gnósticos eram um conjunto de seitas que existiram no início da Era Cristã e que alcançaram seu auge no século II. Os Gnósticos (conhecimento) centravam-se na mensagem espiritual, no conhecimento interior e secreto (Gnose), no aperfeiçoamento da alma, e defendiam que os principais segredos só seriam revelados àqueles que fossem dignos dessa revelação. Entre outras inovações, eles davam espaço e voz ao feminino. Algumas mulheres actuavam como sacerdotisas e líderes. Em alguns grupos o próprio Deus era descrito como uma Mãe Divina. O Evangelho de Maria Madalena informa que Madalena era uma das apóstolas, uma das discípulas favoritas de Jesus. Para este apócrifo, Madalena era a companheira amada por Jesus e uma forte liderança no início do Cristianismo. Neste Evangelho, provavelmente escrito durante o século II, Pedro sente ciúmes da liderança de Madalena e é advertido por Levi: Pedro, sempre foste exaltado. Agora vejo-te competindo com uma mulher como adversário. Mas, se o Senhor a fez merecedora, quem és tu para rejeitá-la? Certamente o Salvador a conhece bem. Daí a ter amado mais do que a nós. À cultura de Madalena e sua eloquência contrapõe-se o inculto e rude Pedro. O texto apócrifo do Evangelho segundo Felipe afirma que Jesus amava Madalena mais que todos os discípulos e a beijava na boca, frequentemente, o que reforça a questão da transmissão de sabedoria: [...] a companheira de Cristo é Maria Madalena. O Senhor amava Maria mais do que a todos os discípulos e a beijou na boca repetidas vezes. Os demais [...] lhe disseram: Por que a queres mais que a todos nós?
Este beijo, por mais que se queira forçar o texto, não indica uma situação sexualizada, já que o beijo no simbolismo judaico significava transmissão de conhecimento. O facto é que, tanto nos Canónicos como nos Apócrifos, não existe nenhum trecho que afirme que houve relação carnal entre Jesus e Madalena. Tudo é uma questão de interpretação. Seguindo a lógica, afirmamos que Jesus, sabendo que não teria uma vida muito longa e que esta seria muito atribulada, optou pelo celibato, embora isso fosse excepção no mundo judaico. Mas voltemos à Madalena. Nos Evangelhos Gnósticos, o apóstolo Pedro não gostava da liderança de Madalena e pede que Jesus a expulse do grupo, revelando a sua misoginia. No Evangelho de Tomé, Jesus ironicamente afirma que transformaria Madalena em homem para que ela pudesse entrar no reino dos céus. Nos Evangelhos Gnósticos, Madalena é símbolo de conhecimento e sabedoria, portadora de conhecimentos ocultos transmitidos por Jesus e só revelados a ela. Ela era também confidente de Jesus, intermediária entre Ele e os seus discípulos, herdeira e portadora da verdadeira sabedoria. O texto do Apócrifo de Felipe não revela nenhum relacionamento marital entre Madalena e Jesus. Se ela realmente fosse mulher de Jesus, Ele teria respondido simplesmente: por ser minha esposa, ou simplesmente nem sequer haveria a pergunta acima. Cabe lembrar que o casamento era uma bênção tanto no judaísmo como no cristianismo (os patriarcas eram casados, a maioria dos discípulos também). Salientamos também que Jesus vivia rodeado de mulheres (samaritana, a pecadora, Marta e Maria, irmãs de Lázaro). É Paulo Leminski (1990) no seu texto Jesus a.C. quem afirma que Jesus era um homem carismático e cortejador: sabia tratar uma mulher com a dignidade que esta merecia e neste sentido estava muito à frente do seu tempo, modificando o costume judaico com relação ao sexo feminino. Essa sua perfeita comunhão com as mulheres irritava os seus discípulos: Jesus falava em público com as mulheres e isto era proibido pela lei judaica; Jesus deixava-se tocar por mulheres; ele possuía uma vida itinerante e muitas mulheres se tornaram itinerantes também.
Podemos dizer, sem medo de errar, que, em um dos ensinamentos perdidos de Jesus, está a completa igualdade entre homens mulheres na construção do mundo melhor que Ele almejava. Portanto, se Jesus fosse casado, isto seria um facto tão normal que os evangelistas que redigiram os Evangelhos Canónicos teriam naturalmente relatado o ocorrido, assim como os Evangelhos Apócrifos também trariam ricos detalhes sobre esse assunto. O Concílio de Niceia, realizado em 325 d.C., foi um dos mais complexos debates teológicos da história do Cristianismo. Nele se determinou a natureza humana e divina de Jesus e isto formou a base da doutrina Cristã. Neste Concílio, também foi realizada a separação dos Evangelhos Canónicos e dos Evangelhos Apócrifos. Na realidade, esta separação foi uma espécie de depuração que já vinha ocorrendo durante os primeiros séculos do Cristianismo. É Elaine Pagels, uma estudiosa de Madalena, quem defende a tese de que a supressão do evangelho atribuído à Madalena, ou escrito, segundo ela, ocorreu provavelmente muito mais por questão estratégica do que sexista. Segundo Pagels, o Evangelho de Madalena pertencia ao gnosticismo, uma corrente que pregava um duro regime de iluminação pessoal e a rejeição à hierarquia da Igreja. Uma Igreja assim só atrairia uns poucos seguidores e nunca chegaria às massas, e as massas eram o objectivo dos apóstolos, objectivo este que prevaleceu». In Salma Ferraz, organização, Maria Madalena das páginas da Bíblia para a Ficção, Textos Críticos, Eduem, UEM, Maringá, Brasil, 2011, ISBN 978-85-7628-334-8

Cortesia de Eduem/JDACT