Maria Magdalena. A anti-odisseia da discípula amada
«(…) E qual é a face de
Madalena nos Evangelhos Apócrifos, do grego apókriphos? E nos Evangelhos
Gnósticos? Lembramos que o significado do termo apócrifo com o tempo
foi-se modificando: de secreto passou a significar autenticidade duvidosa, e,
posteriormente, espúrios ou suspeitos de heresia. Os gnósticos
eram um conjunto de seitas que existiram no início da Era Cristã e que
alcançaram seu auge no século II. Os Gnósticos (conhecimento) centravam-se
na mensagem espiritual, no conhecimento interior e secreto (Gnose), no
aperfeiçoamento da alma, e defendiam que os principais segredos só seriam
revelados àqueles que fossem dignos dessa revelação. Entre outras inovações,
eles davam espaço e voz ao feminino. Algumas mulheres actuavam como
sacerdotisas e líderes. Em alguns grupos o próprio Deus era descrito como uma Mãe
Divina. O Evangelho de Maria Madalena informa que Madalena era uma das
apóstolas, uma das discípulas favoritas de Jesus. Para este apócrifo, Madalena
era a companheira amada por Jesus e uma forte liderança no início do
Cristianismo. Neste Evangelho, provavelmente escrito durante o século
II, Pedro sente ciúmes da liderança de Madalena e é advertido por Levi: Pedro, sempre foste exaltado. Agora vejo-te
competindo com uma mulher como adversário. Mas, se o Senhor a fez merecedora, quem és tu para rejeitá-la? Certamente
o Salvador a conhece bem. Daí a ter amado mais do que a nós. À
cultura de Madalena e sua eloquência contrapõe-se o inculto e rude Pedro. O
texto apócrifo do Evangelho segundo Felipe afirma que Jesus amava Madalena
mais que todos os discípulos e a beijava na boca, frequentemente, o que
reforça a questão da transmissão de sabedoria: [...] a companheira de Cristo é Maria Madalena. O Senhor amava Maria
mais do que a todos os discípulos e a beijou na boca repetidas vezes. Os demais
[...] lhe disseram: Por que a queres mais que a todos nós?
Este beijo, por mais que
se queira forçar o texto, não indica uma situação sexualizada, já que o beijo
no simbolismo judaico significava transmissão de conhecimento. O facto é que,
tanto nos Canónicos como nos Apócrifos, não existe nenhum trecho
que afirme que houve relação carnal entre Jesus e Madalena. Tudo é uma questão
de interpretação. Seguindo a lógica, afirmamos que Jesus, sabendo que não teria
uma vida muito longa e que esta seria muito atribulada, optou pelo celibato, embora isso fosse excepção no mundo judaico.
Mas voltemos à Madalena. Nos Evangelhos Gnósticos, o apóstolo Pedro não
gostava da liderança de Madalena e pede que Jesus a expulse do grupo, revelando
a sua misoginia. No Evangelho de Tomé, Jesus ironicamente afirma que transformaria
Madalena em homem para que ela pudesse entrar no reino dos céus. Nos Evangelhos
Gnósticos, Madalena é símbolo de conhecimento e sabedoria, portadora de
conhecimentos ocultos transmitidos por Jesus e só revelados a ela. Ela era
também confidente de Jesus, intermediária entre Ele e os seus discípulos,
herdeira e portadora da verdadeira sabedoria. O texto do Apócrifo de Felipe não
revela nenhum relacionamento marital entre Madalena e Jesus. Se ela realmente
fosse mulher de Jesus, Ele teria respondido simplesmente: por ser minha
esposa, ou simplesmente nem sequer haveria a pergunta acima. Cabe lembrar
que o casamento era uma bênção tanto no judaísmo como no cristianismo (os
patriarcas eram casados, a maioria dos discípulos também). Salientamos também
que Jesus vivia rodeado de mulheres (samaritana, a pecadora, Marta e Maria, irmãs
de Lázaro). É Paulo Leminski (1990) no seu texto Jesus a.C. quem afirma que Jesus era um homem carismático e cortejador:
sabia tratar uma mulher com a dignidade que esta merecia e neste sentido estava
muito à frente do seu tempo, modificando o costume judaico com relação ao sexo feminino.
Essa sua perfeita comunhão com as mulheres irritava os seus discípulos: Jesus
falava em público com as mulheres e isto era proibido pela lei judaica; Jesus
deixava-se tocar por mulheres; ele possuía uma vida itinerante e muitas
mulheres se tornaram itinerantes também.
Podemos
dizer, sem medo de errar, que, em um dos ensinamentos perdidos de Jesus, está a
completa igualdade entre homens mulheres na construção do mundo melhor que Ele
almejava. Portanto,
se Jesus fosse casado, isto seria um facto tão normal que os evangelistas que
redigiram os Evangelhos Canónicos teriam naturalmente relatado o
ocorrido, assim como os Evangelhos Apócrifos também trariam ricos
detalhes sobre esse assunto. O Concílio de Niceia, realizado em 325
d.C., foi um dos mais complexos debates teológicos da história do
Cristianismo. Nele se determinou a natureza humana e divina de Jesus e isto
formou a base da doutrina Cristã. Neste Concílio, também foi realizada a
separação dos Evangelhos Canónicos e dos Evangelhos Apócrifos. Na
realidade, esta separação foi uma espécie de depuração que já vinha ocorrendo
durante os primeiros séculos do Cristianismo. É Elaine Pagels, uma estudiosa de
Madalena, quem defende a tese de que a supressão do evangelho atribuído à
Madalena, ou escrito, segundo ela, ocorreu provavelmente muito mais por questão
estratégica do que sexista. Segundo Pagels, o Evangelho de Madalena pertencia
ao gnosticismo, uma corrente que pregava um duro regime de iluminação pessoal e
a rejeição à hierarquia da Igreja. Uma Igreja assim só atrairia uns poucos
seguidores e nunca chegaria às massas, e as massas eram o objectivo dos
apóstolos, objectivo este que prevaleceu». In Salma Ferraz, organização, Maria Madalena das páginas da Bíblia para a
Ficção, Textos Críticos, Eduem,
UEM, Maringá, Brasil, 2011, ISBN 978-85-7628-334-8
Cortesia de Eduem/JDACT